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A presença da bondade



Edgard Leite Ferreira Neto


Hanna Arendt (1906-1975), num livro célebre, A Condição Humana, defendeu a estranha tese de que o ato de bondade perdeu as condições de ser evento político neste nosso mundo. Isso, segundo ela, porque o seu caráter, essencialmente privado ou íntimo, não possui lugar social na era do predomínio da esfera pública.


Como defendeu Arendt, as afirmações de Jesus, "guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles” e "quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens” (Mt 6:1-2) significam que o ato de bondade é desprovido de testemunho social e “jamais pode converter-se em parte do mundo”.


Ela chega, inclusive, a recordar Maquiavel, que escreveu sobre a necessidade de ensinar ao ser humano como "não ser bom”, para que pudesse realizar atos que (além de autorais) tivessem fim no mundo e não fora dele.


Tal perspectiva está inserida numa tendência geral do mundo moderno: negar aos atos morais, fundados em valores eternos, algum papel na construção da legitimidade das relações políticas. Principalmente porque se tende a reconhecer, como realidade absoluta, o suposto fato da esfera social ou pública ter invadido o âmbito familiar a tal ponto que a religião passou a dizer respeito apenas à esfera privada.


Hanna Arendt esqueceu-se de citar, no entanto, a continuação da afirmativa de Jesus, ao explicar o caráter reservado do ato de caridade: "que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente”(Mt, 6:4). Isto significa que o ato de bondade não é um ato desprovido de dimensão moral objetiva. Possui implicações no comportamento normativo da sociedade. Ele se realiza no mundo concreto, na família, na esfera pública ou social, ou onde for, quando sua intenção, atitude e direção estiverem voltadas para a mais elevada finalidade da vida humana, isto é, Deus.


Os elementos ideais que fundamentam os valores dos homens e permitem a sua humanidade, podem ser percebidos na intimidade, mas se realizam quando, por tomadas de decisões e certas circunstâncias, são estabelecidas transformações no mundo. O ato de bondade reflete a luz e a natureza divinas. Assim agindo, abrimos caminho para Deus, aqui. E o caráter natural desse valor eterno da bondade, refletido na alma humana, é reconhecido perfeitamente quando o fim do ato é percebido.


Pode ser, ao se negar a existência de Deus, que o ato de bondade não consiga ser reconhecido. Isso é possível. Pode ser também, como em Arendt, que se queira excluir do convívio humano a percepção do bem absoluto como fonte da moral, e assim se negue à bondade o seu papel na esfera pública, pois esta está repousada no culto da glória e da riqueza, e no império dos direitos e da vaidade. E dentro dela não há espaço para a metafísica e para a superioridade dos valores espirituais.


No entanto, assim pensa o homem no seu cotidiano, a busca pela realização do ser não pode prescindir de atos de delicadeza, compaixão e bondade. São eventos mais relevantes que o poder e o dinheiro, capazes de estabelecer conexões sensíveis e necessárias entre pessoas.


A presença da bondade traz Deus para o cotidiano humano, como Jesus apontou. E também instaura uma tensão contínua na esfera pública (tanto a antiga quanto a atual), na qual algo maior que a fama e a riqueza pode ser percebido como real. Algo que é capaz de gerar um vínculo verdadeiro e espiritual entre pessoas. Evidentemente um ato político, pois diz respeito à natureza do ser: política. E poucas coisas podem ser mais agradáveis a quem faz o bem que o fortalecimento de uma rede virtuosa de bondades, pública.


O fato da moderna filosofia política ignorar isso não altera tal realidade profunda. Os atos de bondade são realizados em todos os lugares e tempos, e demarcam alguns dos melhores momentos da existência. Exatamente por mostrarem que algo que não está no mundo pode transformar a existência, e torná-la sublime. Uma política da bondade continua, assim, existindo, e ela nos salva, cotidianamente, do inferno das incertezas da esfera pública.







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