Trecho do livro Diário Místico. de Edgard Leite (Jaguatirica, 2019)
"Porque a tendência de negar a vivência do paradoxo e a profundidade do sentido da escolha sempre foi existente entre os humanos. Não é uma novidade inventada pelos comunistas.
A tormenta da mente humana é tão abissal, seu sofrimento tão contínuo, que sempre pareceu a muitos que ela não deveria existir.
Os nazistas também negavam o perfil construtor desse paradoxo, desse conflito interior. E achavam que a raça tudo decidia. Que só a biologia explicava o que as pessoas eram. Ela desqualificaria o paradoxo. Alguns são dessa forma, outros, daquela.
Sem dúvida a Bíblia era o principal adversário desse modelo. E os judeus acima de tudo. Porque foram os primeiros. E deles surgiu toda o movimento de afirmação da capacidade decisória.
Eliminá-los era um objetivo essencial daquela utopia devastadora.
Utopias de esquerda? Utopias de direita? Todas eram utopias.
Todas pretendiam que o ser não fosse aquilo que é: um poço ou um abismo, de contradições, dúvidas e sofrimentos. Também para os nazistas esse universo interior deveria desaparecer. Nisso eram iguais aos comunistas.
Mas os judeus insistiram em dizer, sempre, que é por conta dessa tormenta interna, exatamente, que temos o mandamento de tomar decisões, e escolher dentro de nós o caminho da vida. Essa tempestade interior é a matéria-prima da nossa realização humana.
E esse mandamento nos faculta a decisão errada, o arrependimento, e a tomada de novas decisões, certas.
E que, no decorrer das decisões, a nossa consciência se eleva, momento após momento, escolha após escolha, e nos tornamos crescentemente livres. Para tomar decisões no caminho da vida. Até o momento em que o corpo colapsa.
Quando então, assim escreveu Daniel:
“Os sábios resplandecerão, como o resplendor do firmamento; e os que a muitos ensinam a justiça refulgirão como as estrelas sempre e eternamente” (Dn12:3).
O caminho da vida se estende para além da vida e não só da minha, para a de meus descendentes, mas para além dos limites da própria vida sensível.
Não parece que as lideranças nazistas tenham tido, em qualquer momento, a percepção sensível do papel desse povo, e da profundidade da mensagem que ele portava. Mas certamente entendiam o que ele significava, do ponto de vista maior. Já que eram, os nazistas, portadores de uma utopia de dimensões cósmicas. Que abarcaria todo universo humano.
Os judeus portavam a crença na liberdade.
No livro do Gênesis está escrito que quando Deus abençoou a Abrão, deixou claro que:
“Abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3).
“Benditas todas as famílias da terra” quer dizer, entre outras coisas, que o tema da liberdade será, algum dia, segundo a Bíblia, o tema central da humanidade. E esse tema foi, primeiramente, revelado ao povo judeu.
Quando se viu Berlim destruída, em 1945, ou Chernobyl devastada, em 1986, alguém deve ter pensado que ninguém pode, impunemente, se voltar não apenas contra os judeus, mas também contra o desejo humano de escolher, de tomar decisões.
Cecília Meireles, no preâmbulo de seu livro Cânticos escreveu:
“Dize: O vento do meu espírito Soprou sobre a vida. E tudo que era efêmero Se desfez. E ficaste só tu, que és eterno...”
E nos perguntamos: ‘Quem és tu? Qual o teu nome?’ “
E ela responde, na epígrafe de seu livro:
“Teu nome é liberdade”.
Aquilo que não é transitório, que é absoluto, a eternidade, se alcança através da liberdade. Liberdade de decidir. A liberdade humana é, como disse Daniel, caminho da vida. E caminho para além da vida.
Depois que essa ideia entrou no mundo, nada pode destruí-la. E todos que contra ela se voltarem, assim diz o texto bíblico, afundarão no efêmero, e desaparecerão. Amaldiçoados.
Auschwitz é a mais terrível tentativa de destruir o humano que foi tentada nos tempos presentes. Mas, na sua atrocidade, demonstrou sua terrível inutilidade.
Não se pode destruir o mandamento da escolha. Nem o povo que o trouxe ao mundo. A escolha repousa naquilo que torna o homem humano: sua mente confusa e atormentada, mas, por isso mesmo, capaz de depreender o bem e o mal.
Porque o paradoxo não é destruidor, mas sim a própria essência do ser. É eco da inexistência prévia que se torna existência pela decisão: faça-se. “Haja luz; e houve luz” (Gn1:3). Expressão do mistério da origem da condição humana. E que ecoa nas nossas decisões.
É do paradoxo que emerge nossa humanidade. E nosso fascínio pelo bem, pelas boas coisas, por aquilo que nos permite apreciar as bençãos da vida.
Eu me lembrava do vazio, da amplidão que hoje caracteriza o campo de concentração. O vento soprava frio e silencioso e poucas nuvens iam correndo pelo céu muito azul.
Eu me afastei do grupo orientado e andei pelas fundações das antigas unidades prisionais. Aqui as dos judeus. Ali, dos ciganos, que nunca estavam em um só lugar e que corriam pelo mundo de um canto a outro. Mas morreram ali.
Todo o lugar era um gigantesco memorial aos homens livres e à ideia da liberdade e ao mandamento da escolha. E, embora assombrado, e houvesse algumas almas, em alguns cantos, próximo à cerca e na câmara de execução, me pareceu que predominava o silêncio.
Um silêncio tão profundo, tão absoluto, que me remetia a uma dimensão maior que estava além das formas conhecidas e nomeáveis.
Percebi que era um monumento àquele que permanece, quando tudo se desfaz, e é eterno, e cujo “nome é liberdade”.
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