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Palavras de Edgard Leite no Congresso Internacional 1700 anos do I Concílio de Nicéia.



Observações sobre influências judaicas na teologia cristã no período pré-conciliar.


É cerne da doutrina cristã o fato do cristianismo emergir do judaísmo. Por séculos, profetas e videntes judeus tiveram em suas mentes as imagens, captadas em sonho ou em vigília, de acontecimentos futuros que só ao seu povo foram destinadas. Estas prefiguravam os cruciais momentos que iluminaram o entendimento humano com o magistério de Jesus.


Que ele “veio para o que era seu”(Jo 1:11) é uma afirmação cujo significado maior não passou desapercebido aos que então viveram os acontecimentos mais cruciais da jornada humana no tempo. Mas a continuação dessa passagem inspirada de João é misteriosa, "mas os seus não o receberam”.


A história dos antecedentes do Concilio de Niceia é, em grande parte, a história da interação entre aqueles que receberam e aqueles que não receberam a mensagem redentora de Jesus.


A observação de João possui uma perspectiva étnica mais ampla, dirigida à totalidade da descendência de Abraão, Isaac e Jacó, mas não, especialmente, aos judeus que viviam na época de Jesus. Observemos que Jesus era judeu bem como todos os seus apóstolos e seguidores e estes e muitos o receberam. Mas embora recebido por esses muitos, Jesus não foi recebido por todos. Tal realidade tem uma dinâmica que deve ser considerada no entendimento da natureza precisa do significado da relação entre um substrato histórico resistente e a clareza imaterial da revelação.


O significado de tudo isso não deixou de ser objeto de reflexão por aqueles que viveram os efeitos dos acontecimentos da Judéia ao longo dos primeiros séculos de nossa era e ouso dizer que uma plena explicação do assunto ainda permanece obscura.


Jean Danielou, em sua A mensagem do Evangelho e a cultura helenística, chama a atenção, nesse sentido, para a pioneira obra de Justino Martir(100-165). Este, logo depois dos acontecimentos narrados nos Evangelhos, isto é, cerca de um século depois da morte de Jesus, já apresentava uma identidade cristã claramente formada e distinta da identidade judaica.


Justino não tinha origem judaica, mas sim romana, descendendo de uma família que passou a ocupar uma cidade construída, após a primeira guerra judaica (66-73) no local que hoje é Nablus, na atual Cisjordânia. Cresceu, portanto, em uma região marcada pela inconstância das relações entre judeus e cristãos carcaterística não apenas do crescimento do caminho cristão mas também dos ressentimentos e dores da guerra. Ele manifestava uma clara perplexidade com a relação entre as duas religiões, que via tão integradas do ponto de vista profético e, ao mesmo tempo, tão separadas do ponto de vista de suas realidades doutrinárias.


Justino conheceu, depois da rebelião de Bar Kochba (132-135), um judeu, chamado Trifão, com o qual procurou estabelecer, em seu Diálogo com Trifão, conexões textuais entre o Velho o Novo Testamento e interpretá-las, tratando por meio delas do complexo tema da relação dos judeus com a mensagem cristã.


Justino escreveu, também, duas Apologias (a primeira delas dedicada ao Imperador Tito Antonino Pio (86-161)). Nelas identifica-se como cristão e distancia-se de um judaísmo que, durante a “recente guerra judaica" de Bar-Kochba, segundo conta, mandou perseguir os cristãos com ameaças e violências, caso não recusassem a Jesus Cristo. A questão central da dissensão entre os judeus remanescentes e os cristãos em rápido desenvolvimento foi por ele, precisamente, apontada, e era Jesus Cristo. Justino o entendia como filho de Deus, homem e Deus.


É em torno do ano 100, mesma época de Justino, que nas sinagogas foi introduzida a benção contra os heréticos, por ordem do rabino Gamaliel II, em Jamia, cujo objetivo era precisamente forçar os cristãos que frequentavam a sinagoga, ou os judeus-cristãos, a dizer amem a uma fórmula que condenava sua crença e cujo teor exato é hoje desconhecido.


A natureza desse conflito é tema de muitos estudos. No caso cabe-nos anotar que o desenvolvimento da doutrina cristã, nesses primeiros séculos tinha também em mente estabelecer respostas às posições crescentemente hostis dos rabinos, que se ampliam após o desastre de 136, isto é, a derrota da revolta de Bar-Kochba, a que levou Justino a encontrar-se com um angustiado Trifão.


O Concílio de Nicéia, embora distante de Justino em duzentos anos, repercute essas preocupações de estabelecer claramente a natureza da doutrina diante das reações judaicas sobre o sentido maior revelado no magistério de Jesus. Ficou claro aos contemporâneos do período de consolidação doutrinária na época do imperador Constantino, que muitos ainda pensavam os elementos da fé sob um olhar judaico, ou melhor, sob a perspectiva de um “não recebimento". Parecia ser o caso de Ário, por exemplo, principal motivacão do concílio. Uma das críticas  colocadas por Santo Atanásio ao seu pensamento herético, que tinha tanta influência na época, isto é, a de que havia nele influência judaica, não era, certamente, exageradas.


De fato, encontramos em textos rabínicos do período da alta idade média ideias similares às de Ário sobre o caráter obscuro da origem do messias, entendendo, muitos, entre os rabinos, de forma similar como Ário o fazia, que o Messias era engendrado por Deus antes da criação do mundo e lá permanecia até o momento de sua vinda à terra, mas como criatura. Tal percepção era bem próxima à doutrina ariana, embora esta, por ser cristã, admitia que o ungido já viera.


A afirmativa do Concílio de Niceia, relativa ao fato de Jesus ser verdadeiro Deus e verdadeiro Homem avançou no sentido de consolidar a experiência central da fé, tão cara à Justino, diante de especulações que vinham de substrato teológicos já, nessa altura, não cristã, mas sim judaico. O encaminhamento da questão da Trindade, de fato, introduziu a solução de um problema que já era colocado na tradição bíblica, e que deixava muitos pensadores judeus perplexos. Isto é, a real natureza do Espírito Santo, cujas ações são usualmente narradas no Velho Testamento. O problema não era, portanto, estranho ao judaísmo. Sabemos que esta questão acabou sendo solucionada, do ponto de vista rabínico, pela Cabalá e pela doutrina das sefirot. Assegurando barreiras ao não recebimento da mensagem cristã do ponto de vista doutrinário.


Um dos elementos mais relevantes abordado no Concílio de Niceia, no sentido de resolver essas incongruências que emergiam do não recebimento dAquele que viera para os seus, e que continuava influenciando o pensamento cristão, foi o de procurar solucionar a questão do tempo, ou a tentativa de estabelecer uma cronometria que pudesse estabilizar a percepção cristã sobre o sentido da experiência litúrgica, cíclica, temporal.


Em posicionamentos católicos anteriores havia, de quando em quando, o contínuo movimento de se desvincular o sábado, por exemplo, da experiência litúrgica recorrente. Pois muitos cristãos, não apenas de origem judaica, continuavam persistindo no movimento de frequentar sinagogas no sábado.  Não eram apenas os rabinos, realmente, que tentavam impedir os cristãos na sinagoga, mas os cristãos também tinham esse objetivo, muitas vezes sob ameaça de excomunhão. No momento em que se rompeu com o calendário lunissolar judaico e adotou-se o, exclusivamente, solar Juliano, a presença do Domingo foi reforçada. Estabelecendo-se uma nova experiência do ciclo semanal e anual. Os bispos reunidos em Niceia dedicaram-se, portanto, em consequencia desse assunto, a um tema ainda mais central, o da desvinculação da data da Páscoa cristã dos mecanismos de cálculo da festa realizado pela calendário judaico.


Alguém pode observar que embora ressignificado, o momento judaico que começa em Pessach e que termina em Shavuot, 49 dias depois, continue tendo sua contrapartida na Páscoa e em Petencostes. Isso é compreensível, pois a realidade dos acontecimentos históricos das paixão e ressurreição de Jesus se dá num quadro prefigurado pela tradição, o que não é de surpreender, pois Ele veio para os seus. A questão tempo, portanto, não era de menor importância nessa relação de imbricação entre a mensagem redentora cristã e seu substrato histórico judaico.


Alguns séculos depois, podemos observar, no caso da doutrina histórica de Joaquim de Fiori, que a sua tese dos três tempos que dividem a cronologia universal, possuia uma clara correspondência no Talmude, no qual os rabinos afirmaram uma opinião semelhante, também de divisão do tempo histórico em três etapas. Assim não se pode deixar de reconhecer que mesmo após Niceia continuou existindo uma certa porosidade entre o judaísmo e o cristianismo em pontos doutrinários significativos.


Cabe-nos entender que, entre diversas temas, o concílio de Nicéia representou um momento crucial no estabelecimento de limites doutrinários centrais da fé diante da persistência de percepções ou dúvidas judaicas que nunca deixaram de permear especulações teológicas cristãs, como ficou claro no caso de Joaquim de Fiori.


Há que se anotar, no entanto, que estas, após Nicéia, não mais foram capazes de confundir os elementos centrais da fé e descaracterizar a mensagem da redenção. Principalmente porque nele se estabeleceu a divindade de Cristo. Niceia foi um momento central na consolidação do recebimento de Jesus entre os seus. Mas deve-se observar, por fim, que, ao falar dos judeus, João não falava apenas deles. Pois se Jesus veio para os judeus, também é verdade que ele veio não apenas para eles, mas sim para a humanidade inteira. Pode-se assim considerar que as controvérsias heréticas fazem parte de um contínuo movimento de reação do Homem aos valores da redenção.

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