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Frédéric Mauro e o Atlântico



Edgard Leite Ferreira Neto


Cabe anotar que um dos maiores problemas dos historiadores contemporâneos está na pouca intimidade com a Filosofia. Mesmo o campo da História das Ideias, que poderia valorizar o estudo do desenvolvimento da meditação humana, não tem o devido valor reconhecido nos estudos formativos da área.


Essa carência de Filosofia é particularmente significativa porque o historiador nem sempre tem inclinação, por exemplo, para poder discutir aquilo que é uma de suas matérias-primas, ou seja, o tempo. Marc Bloch (1866-1944), um dos mentores intelectuais da Escola dos Annales (1929), afirmou, no seu Apologia da História, que a História é a “ciência dos homens no tempo”. A afirmação repousa, ela mesma, em dois mistérios: O que é ciência? O que é o tempo?


No que diz respeito ao segundo problema, Marc Bloch e os historiadores usualmente não se dão conta que esse conceito, o tempo, não é óbvio, nem pode, nem nunca pôde, ser reduzido ao tempo da física newtoniana, um tempo absoluto. O tempo implica em transitoriedade, e esta só pode ser entendida a partir da eternidade. A não ser que a pessoa acredite no vazio, mas como entender algo a partir do nada?


Tal complicador torna a História bem hostil a uma discussão filosófica. Em grande parte porque a Filosofia pode comprometer a certeza que a historiografia sustenta dentro da tradição iluminista, isto é, a de que está envolvida com o processo de transformação do mundo. E isso é particularmente sensível nas teorias da História marxistas e pós-marxistas. Se o tempo for transitoriedade por essência, por exemplo, o que é a ação dos homens nele?


No tocante ao primeiro tema, o da ciência, nunca ficou claro se a História de fato é uma. Por isso a tendência de alguns integrantes da Escola dos Annales, principalmente da segunda (1946-1968) e terceira (1968-1989) gerações, de buscar na história econômica, nos números, ou de pontuar no espaço, na geografia, uma objetividade documental. As ações humanas não deveriam ser aceitas como aleatórias, mas sim entendidas como condicionadas ou atadas a números e necessidades espaciais, concretas e objetivas. Passíveis de um inquérito científico.


Quando estava planejando meu doutoramento, li o livro de Frédéric Mauro (1921-2001) (discípulo de Fernand Braudel (1905-1985)): Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670). Nesse livro curioso, Frédéric Mauro analisou o trânsito continuo de pessoas e mercadorias pelo Atlântico, entre os séculos XVI e XVII, e explicou-o a partir das necessidades comerciais e da fluidez própria desse Oceano dominado por Portugal.


O que ele pretendia exatamente com o livro? Hoje entendo que principalmente mostrar como quantidades diversas de capital foram acumuladas por comerciantes e pelo Estado português. Isso lhe parecia ciência, já que envolvia números e relações entre números, espaços e eventos de natureza econômica. E que sendo documentadas e quantificáveis poderiam ser ponderadas em um tipo qualquer de lei de natureza econômica capaz de permitir alguma forma de previsão em longuíssima duração.


Não é surpreendente, no entanto, que a história econômica tenha quase desaparecido. Ela era limitada ao processo de confirmar números, depreendendo que a partir desses números se podia dizer algo sobre o desenvolvimento das sociedades. Mas nem sempre dava conta, de forma apropriada, das surpresas contidas no planejamento da gestão econômica, nem dos elementos do espírito envolvidos no processo. Restringia-se a numerar eventos no mundo visível achando que isso resolvia o problema do humano. O que afirmava, exatamente, sobre esse tema, Frédéric Mauro? Principalmente que as mercadorias fluíam pelo Atlântico, sendo trocadas, compradas e vendidas. Mas a isso se reduz o drama humano?


A leitura de Mauro sugere que a construção da narrativa da história é exercício de desejo do pensador. Envolvido com questões políticas, pessoais, sociais, ou religiosas, o narrador dos acontecimentos passados reconstrói a trama dos elementos documentais para que façam sentido ao que acredita. Isso não implica, necessariamente, em falsificação de fatos, ou na negação da verdade desses fatos. Mas, na maior parte das vezes, na seleção interessada de problemas e de fontes.


No caso de Mauro, nada que não pudesse ser quantificado lhe parecia digno de ser considerado, porque pensava numa determinada forma de ciência. Nada que não se expressasse no instante poderia ser avaliado, porque estava voltado apenas para o tempo, fosse isto o que fosse. Mas isso não significa que sua narrativa não fizesse sentido, nem que estivesse errada. Se há rigor técnico na escolha e leitura das fontes, ela é correta, embora apresente apenas um aspecto da realidade desaparecida.


A História é assim: reflete as muitas interpretações do passado para nortear as diversas visões que do presente existem sobre o que passou e que fundamentam as inumeráveis decisões humanas na existência.


É claro que sempre se fará crítica a tudo que se diz sobre a história, porque toda narrativa é incompleta. E, por isso, lendo Mauro, nos perguntamos, olhando todos aqueles dados, registrados, de produção, exportação e importação, que tipo de ansiedade estava presente naqueles que fizeram tanto esforço para fixar, pelos números, uma realidade concreta da qual nada mais restou, apenas a memória das quantidades. Será a história também a misteriosa ação dos humanos tentando capturar os instantes?




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