por Edgard Leite (Diretor do Instituto Realitas)
Eric Hobsbawm (1917-2012) impera no sistema educacional. Em todos os níveis dele.
A sua visão do mundo contemporâneo é tida como autorizada. E citá-lo e acompanhá-lo é entendido como estar ao lado correto da interpretação do passado.
É compreensível que seja assim. Hobsbawm foi, durante décadas, o principal historiador marxista do Ocidente. E, enquanto tal, recebeu todo apoio da intelectualidade, das editoras e das mídias em geral. Houve um imenso esforço em traduzi-lo e reeditá-lo permanentemente.
Sempre foi importante, para os interessados, que a visão de mundo marxista pudesse ser difundida e fosse capaz de moldar as consciências com um determinado olhar sobre as coisas, especialmente sobre a história.
E, nesse sentido, Hobsbawm dedicou-se a vulgarizar, a tornar pública, essa visão. O esforço para populariza-lo foi, portanto, geral no meio das esquerdas.
Hobsbawm foi um historiador que buscou aplicar, ao estudo da história, vários aspectos do pensamento marxista. Inclusive alguns que eram menores, ou não claramente perceptíveis em sua dimensão histórica.
É o caso, por exemplo, do tema dos bandidos sociais, que Hobsbawm desenvolveu, a partir da singela, mas tão incrível, afirmação de Marx, na Ideologia Alemã, de que o conceito de “crime” deve ser definido como “a luta do indivíduo isolado contra as relações dominantes”.
Se assim for, o criminoso é, em sua essência, um reagente, um resistente isolado contra relações de poder impostas a ele pela “classe dominante”. Os problemas éticos e morais implícitos nessa afirmação são significativos. Pois, por ela, pode-se justificar o crime e qualquer transgressão possível.
Isso representa, é claro, uma negação da “regra de ouro”, como horizonte ético necessário. Isto é, não desejar ao outro o que não gostaria que fosse feito a você.
Essa afirmativa, de fato, de Marx, admite a possibilidade de que bandidos adquiram, dentro da teoria, o perfil de justiceiros, movidos por um sentimento de reparação social. Assim, suas ações possuem alguma legitimidade.
Isso faz com que Virgulino Ferreira Lampião (1898-1938), por exemplo, possa ser considerado um tipo de herói.
Evidentemente que, para aqueles que tiveram seus bens roubados, para aquelas que foram estupradas pelo seu bando e para todos que tiveram suas vidas destruídas pela imoralidade do ato criminoso, essa possibilidade é inconcebível.
Como o é para qualquer um que seja vítima de semelhante ação. A elevação de tal pessoa a condição de justiceiro é péssima, inclusive, para o processo formativo pessoal. Pois como pode ser um exemplo alguém que constrói sua vida através da roubo?
Mas a construção da imagem de um bandido social que, acima de tudo, reage a um poder autocrático, seduz àqueles que acreditam que as suas próprias transgressões podem ser justificadas de alguma forma. Ou que acreditam que os ressentimentos pessoais, ou a inveja, são elementos legítimos para sustentar as ações humanas no mundo.
Hobsbawn, assim, levou a sério a proposta de comprovar, de alguma maneira, as proposições de Marx na história. Mesmo que, para isso, fosse forçado a iludir. Isto é, a voltar-se contra o senso comum e ignorar o sofrimento humano gerado pelo descontrole das paixões, pela inveja e pelo desajuste.
Existe em Hobsbawm essa insensibilidade à subjetividade do outro, que é próprio do pensamento marxista.
Não importa muito o que os outros sentem, o que os outros passam, suas dores interiores, suas alegrias circunstanciais ou duradouras. Importa o império dos conceitos. O rude predomínio da teoria.
E a teoria diz que os interesses econômicos dos juristas, interesses de poder, é que determinam o espírito das leis. E não a necessidade de preservar o humano do outro humano.
A lei visa, segundo Marx, garantir a propriedade privada. A lei interessa à “classe dominante”. Assim, quando uma pessoa se volta contra uma lei, Marx entendia que ela reagia contra a classe dominante que se estrutura sobre o princípio da propriedade privada.
Alguém sofreu com o ato criminoso? Não importa muito. Tal pessoa sofreu não porque o cangaceiro roubou e estuprou, mas porque a classe dominante estabeleceu a lei.
O cangaceiro é inocente. Tal crime deve ser imputado à classe dominante, que criou a razão do crime. A lei que garantia a propriedade privada.
Mas, existe essa coisa, a classe dominante? Esse é um tema complicado.
Marx nunca definiu, claramente, o que vem a ser isso.
Porque, de fato, é difícil entender que pessoas, apenas por viverem a partir de um determinado tipo de atividade econômica, ou desempenharem um papel análogo qualquer na sociedade, devam pensar e agir, todos, da mesma forma. Ou que tenham os mesmos interesses e objetivos.
A realidade nos mostra, ao contrário, que um magnata que vive do sistema financeiro pode ser perfeitamente capaz de financiar grupos de extrema esquerda. E não é apenas um caso isolado. Ou que interesses conflitantes podem existir dentro de um mesmo grupo social, mesmo porque sempre há competição entre indivíduos. Por razões econômicas, mas também individuais e existenciais.
Nada parece indicar a existência de uma coerência necessária de atitudes e visões políticas entre indivíduos que desempenham mesmas funções na sociedade.
Então de onde pode ser legítimo o saque perpetrado por um cangaceiro? Na verdade, de lugar nenhum.
A mesma lei que garante a inviolabilidade de uma fazenda, de uma casa, de uma indústria, é a que garante o direito de viver de um mendigo. O direito de propriedade é o direito à vida. Pois propriedade em seu sentido maior é a propriedade do próprio corpo.
O roubo é um ato condenável do ponto de vista moral e ético.
E tão naturalmente condenável que exige, sempre, a violência para ser realizado. Uma história que nega esse fato é história que se volta contra a realidade das relações que sempre foram estabelecidas entre os seres humanos.
E essa é a história que faz Hobsbawm.
Pode ser que tal concepção expresse, no elogio do crime, uma sinergia, não totalmente assumida, entre a teoria e o ato criminoso. Sinergia entre a agressividade de um pensamento, como o de Hobsbawm, que violenta o senso comum e destrói os valores essenciais, com a violência do cangaço.
É como se Hobsbawm dissesse: nós também somos ladrões e destruidores. Nos move o mesmo sentimento dos cangaceiros. E, é legítimo agir assim.
O objetivo desse tipo de história é destruir a legitimidade das boas ações, justificando o império do ressentimento e dos desejos.
Usar a falsificação do sentido dos atos humanos para legitimar outros crimes. Principalmente o da destruição da consciência, em prol de uma teoria ilusória.
É surpreendente que a obra de Hobsbawm tenha tanta legitimidade e seja tão universalmente lida sendo ela tão daninha ao ser humano.
Mas assim são as escolhas humanas.
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