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A era dos simulacros



Edgard Leite Ferreira Neto


Entre os poemas de Jorge Luis Borges (1899-1986), encontra-se O Gólem.


Trata-se de uma reflexão quase filosófica sobre um movimento banal do Homem: o tentar tornar-se Deus. E uma das expressões dessa anseio: criar um ser humano artificial. Tanto alquimistas quanto cabalistas se dedicaram a isso por séculos. Na Alquimia, tentavam fazer crescer o homúnculo, a partir de matéria orgânica: sémen, sangue. Na Cabala, o objetivo era criar o gólem, a partir de matéria inanimada: barro.


Nos reconta Borges que, por meio de permutações de letras da escrita sagrada, o Rabino Judá de Leon, em Praga, conseguiu criar, do barro, do inanimado, um ser vivo, que parecia um humano. O Rabino lhe ensinou muitas coisas, e o utilizava como servente na sinagoga. Mas tinha alguns problemas. Por exemplo, ele nunca aprendeu a falar. Além do mais, seus olhos eram estranhos e assustadores, "menos de homem que de cão, E ainda menos de cão do que de coisa”. De fato,


”algo anormal e tosco houve no Gólem,

Já que ao seu passo o gato do rabino

Se escondia".


Como não poderia ser diferente? Podem os seres humanos, com toda sua ciência, reproduzir a inalcançável potência criadora de Deus? O Rabino, segundo Borges, olhava o gólem com ternura, mas, também, com horror. E a questão central, comenta, era a profunda desconexão que esse arrogante Rabino apresentava diante da natureza, ao criar um ser vivo que parecia um humano:


"Quem nos dirá as coisas que sentia Deus, ao olhar o seu rabino em Praga?"


O tema, em si, tornou-se maior no mundo contemporâneo. Porque entre os avanços da ciência encontram-se elementos capazes de dar nova substância ao projeto de criação de homúnculos e de gólens. E podemos dizer que, de fato, vivemos na era dos simulacros.


Mary Shelley (1797-1851) atualizou esse objetivo, para o nosso mundo iluminista, em seu romance Frankenstein. Na época em que escreveu o livro, a Alquimia estava sendo superada pela Química. Esta propunha abandonar a mística e realizava manipulações muito mais profundas, e matematicamente fundamentadas, nos elementos. Além do mais o Iluminismo, com sua crença arrogante na capacidade de tudo poder, convidava os cientistas a ir além de Deus. Nada mais natural, sustenta o Dr. Frankenstein, que se retome o tema do homúnculo ou do gólem, mas tornando-o, agora, realizável pela ciência. Assim, utilizando o conhecimento de seu tempo, criou, com partes de cadáveres, um ser vivo de aparência humana, um tipo de homúnculo.


A autora não teve dúvidas em apontar o profundo equívoco, moral e ético, do cientista, e toda sua experiência é condenada ao fracasso. Porque embora ecoe a imagem e se assemelhe ao seu criador, o monstro não é, de maneira nenhuma, um humano funcional. É um ser desprovido de alma. O Dr. Frankenstein, inebriado pela arrogância, não consegue perceber o grande problema da sua experiência: apesar de desejarmos, não somos Deus. E não podemos nos colocar no lugar dele sem consequências. Estas reafirmam sempre o nosso verdadeiro lugar: somos apenas humanos, limitados e mortais.


No caso da experiência do homúnculo, há que se anotar que de Frankenstein o tema se desenvolveu na medicina. Há muitos que olham, com semelhante encantamento, o futuro da medicina genética. Mas também passou para as ciências humanas . Muitos ideólogos revolucionários desenvolveram seus próprios projetos de criação de quase humanos. Os comunistas, por exemplo, no século XX (e isso continua no século XXI), introduziram a crença de que, através de processos de engenharia social, era possível criar algo que chamavam de um “homem novo”.


Tratava-se de um ser humano produzido de acordo com certos modelos e capazes de se comportar da forma como os intelectuais seus criadores desejariam: obedientes, sem personalidade, sem a capacidade de escolha, ou sem liberdade. Com um código comportamental específico inserido na sua consciência. Muitos, de fato, foram criados, não de matéria morta, como Frankenstein o fez, mas de matéria viva, moldando-os desde a infância. Estes modernos homúnculos, evidentemente, são extremamente disfuncionais. Por serem homens reais, são absolutamente imprevisíveis.


Os problemas da criação, manutenção e natureza desses simulacros ecoam em toda ciência contemporânea. Se os homúnculos estão presentes na medicina ou nas ciências humanas, os goléns se tornaram realidades no campo das ciências exatas. Podemos dizer que os robôs, os computadores e a inteligência artificial são expressões de uma tradição que remonta a uma forma ainda mais radical de se considerar Deus. O encantamento vem do fato de que coisas vindas do inanimado podem se mover ou pensar, por conta da obra humana.


Isaac Asimov (1920-1992) defendeu, em seus contos e romances sobre o assunto, que os robôs precisariam ter impressos em seus memórias certo tipo de protocolo que imitava a lei natural, regulando a moral e a ética. Para que pudessem funcionar a contento e nos servir, com eficiência, e não nos atrapalhar. Pois não tinham, da mesma maneira que os homúnculos, nossa natural empatia. Assim, o risco de se tornarem inimigos era significativo.


A robótica continua insistindo, como os cabalistas, numa criação a partir do barro, da matéria inanimada, do silício, do metal e do plástico. Ao contrário dos Alquimistas, do Dr. Frankenstein e dos revolucionários do século XX, que insistiam e ainda insistem na utilização da matéria orgânica, morta ou viva.


Os humanos, impressionados, vendo os homúnculos e gólens ao seu redor, se perguntam sobre os efeitos disso na existência e no destino das coisas. Em alguns momentos com encantamento, pelas necessidades diversas que satisfazem, em outros, com horror, por conta do imprevisível que inauguram. É a mesma ambiguidade do Rabino Judá: o simulacro varre a sinagoga. Mas o que é, exatamente?


E, como escreveu Borges, Deus observa todos esses estranhos movimentos humanos.



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