Amor eterno
- Edgard Leite
- há 2 dias
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Atualizado: há 1 dia

Texto da conferência proferida no Colóquio Sobre o amor, na Academia Brasileira de Filosofia
Escreveu São Tomás de Aquino que "o artífice trabalha movido pela palavra concebida em seu intelecto e pelo amor de sua vontade em relação a algo". Isto é, o artesão, por exemplo, concebe algo em sua mente, um objeto. E a sua vontade busca, com o amor, que emerge da profundidade de sua consciência, a busca da realização de sua obra. É intenção que se torna sentido na realização de algo. O amor é central na boa existência no tempo, e é absoluta entrega ao acontecimento. Abraão, na busca do sentido, entregou seu filho e Deus, na realização da sua intenção, o seu.
O trabalho puramente material, desprovido desse espírito do amor é tosco, e dizemos sem alma. Não há nele esse eco, ou presença, de algo maior que o mundo: a eternidade, o desafio ao tempo. Pois é de nossa condição esse desafio ao transitório, a busca do sem-fim. O amor é profundo envolvimento com a grandeza da continuidade da ação, porque assim o prosseguimento da obra é possível, superando os percalços na perseguição do projeto que temos em mente. Por isso disse o apóstolo que "o amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha" (1Co 13:4), porque seu movimento no tempo medido torna a elaboração da obra possível no seu agudo cuidado e atenção e no foco exclusivo no trabalho que realiza. Pois o amor é atencioso. Isso torna o objetivo alcançável, porque se busca apenas o bem da criação realizada, completa naquilo que é sua substância.
Assim atua Deus, ao conceber sua obra infinita. E o cuidado que nela coloca é seu amor, que avança pelo mundo da matéria, como sentido, dando forma e equilíbrio a tudo que existe: os movimentos dos planetas, a organização dos genes nas células vivas, os desafios de todas as existências e a busca da solução dos impasses morais.
Há amor na forma quando bem pensamos e por bem pensar resolvemos nossos problemas, assim também no ato de bem nos dirigir ao mundo e no trabalho, construindo coisas que sejam virtuosas e que tenham sinergia com esse sentido de amor maior. Tomamos esse amor em nós como nosso. Porque somos imagens e semelhança dEle, e por Ele percebemos que algo maior que a transitoriedade do mundo pode existir aqui neste universo de fragmentações. Quando nos decidimos a construir coisas a presença desse amor está sempre visível se as queremos fazer bem feitas. Mas o ato de experiência da incrível força do amor, ou daquilo que nos cria, não é apenas dirigido ao inanimado, mas também ao animado, à vida, à nossa realização como animais políticos.
Nem todas as formas vivas dialogam conosco nisso. Embora fiquemos usualmente encantados quando certos animais, como os cavalos, os cães, os gatos, correspondem a essa vontade de construir algo em conjunto que não seja transitório, ou uma relação que perdure para além das transitoriedades em nós e no mundo. Uma obra de sentimentos, cimentada pela cumplicidade em torno do amor e que se traduza em algum grau sua plenitude.
Mas nada se iguala, nesse movimento, com o que naturalmente fazemos com aqueles que são nossos iguais: as outras pessoas humanas. Percebemos que há nisso uma possibilidade completa, uma percepção profunda de que juntos trabalhamos um na direção dos outros, construindo uma obra política e uma comunhão espiritual, na mesma direção, e muitas vezes em oposição às nossas dificuldades de consciência ou dirimindo-as. Os hormônios que nos movem a crescer e multiplicar são apenas uma parte de tudo isso, bem menor, porque efêmeros. Por isso aqueles que chamam estes de "amor" não tratam, certamente, da amplitude e grandeza do amor. Os hormônios são transitórios. O amor busca o eterno.
Percebemos, assim, o amor, quando nos damos conta como essa força se exterioriza numa obra qualquer bem feita e concluída, ou é vivida com alguns animais, quando deles cuidamos. Mas, principalmente e acima de tudo, o percebemos quando nos relacionamos com outros humanos aos quais reconhecemos, admiramos, damos a mão, abraçamos, e com os quais construimos relações. Também estas são expressão de uma intenção eterna que aqui nos permite realizar aquele espírito que dentro de nós nos revela a existência da eternidade. A profundidade do próximo, seu mistério, sua complexa teia de sentimentos, suas memórias, suas grandezas e misérias, espelham a nós mesmos e percebemos que marchamos uns em direção aos outros num fluxo de amor muito maior, infinito, que a todo o universo movimenta. Inclusive nossas pequenas e efêmeras relações, dando a elas sentido.
É duvidoso que, considerando a desafiadora liberdade humana, repleta de vontades dissonantes e dissidentes e que tende ao pecado mais do que às virtudes, possamos todos marchar na mesma direção, realizando no encontro do humano a experiência plena desse amor infinito. Matamos muito a nós mesmos, esquecemos dos amores, rompemos com nossas origens, desprezamos a fragilidade alheia e a nossa. No entanto, sabemos por experiência que é a esperança desse amor que nos leva não só a trabalhar e produzir algo bem feito, mas também a procurar pessoas humanas neste mundo, seja para estarmos com elas, ou alguém em especial, enquanto nos dura a vida, seja para com elas construir processos de construção de famílias, instituições, cidades, nações. E ao viver esses encontros nos enchemos de esperança.
Mais bem sucedida é a percepção do amor quanto mais por ele nos livramos da dor e escravidão do mundo e nos erguemos para a percepção maior da eternidade. Quando vencemos o tempo. Quando, na vivência do sofrimento contínuo da morte permanente de cada instante, nossa consciência nos leva para algo que nunca termina e que nos mostra que, por ele, o amor, nós não terminaremos nunca, seja aqui neste instante que se dissolve, seja na morte, na qual a matéria definitivamente esfria e se decompõe.
Mas o amor sobrevive à realidade desagregadora do mundo com muita clareza: amamos os que já morreram, outros que sequer conhecemos, e podemos amar aqueles que ainda nascerão após a nossa morte, quando, por elas, fazemos coisas neste mundo que possam legar uma existência mais pertinente aos próximos momentos.
Há aqueles que não acreditam neste amor. Porque não o sentem ou porque foram treinados para não senti-lo. E acreditam que o amor é apenas um sentimento que temos por alguém e que se mantém unicamente enquanto nossos desejos se sustentam em função das coisas deste mundo.
Há quem diga que a sexualidade é a única coisa existente, isto é, que apenas o transitório pode e deve unir as pessoas. Herbert Marcuse, por exemplo, clamava pela erotização das relações sociais "erotizar as relações não-libidinais, transformar a tensão e alívio biológicos em livre felicidade", acreditando que qualquer relação que colocasse o eterno sobre o transitório deveria ser condenada por ser repressora, ou melhor, por submeter o momento ao não momento. Já que, para ele, o momento era tudo que podia perceber. Jacques LeGoff, por exemplo, afirmou que "o fim do monopólio dos sinos das igrejas na medição do tempo" libertava o Homem de um controle coercitivo vindo de uma eternidade que Michel Foucault considerará inexistente, "como uma construção cultural que adquire o seu significado apenas no âmbito de uma tecnologia política". De certo que tais ideias, dominantes em nosso mundo contemporâneo, afastam as pessoas do amor ou a este torna um sentimento apenas circunstancial: que não é amor, mas ao não se-lo exige a plenitude do mesmo amor e nele se torna.
Inviabilizando-se o amor da eternidade, no entanto, destrói-se a esperança, pois a vida passa a ser apenas a repetição contínua de relações malfadadas, mortas, que acompanham a fragmentação do mundo. O ódio pelo fato de que tudo termina sempre torna-se sentimento corrente e o ressentimento por nada neste mundo ser o que se espera, passa a ser tristeza destrutiva comum e integrada à jornada da vida. Nesse projeto de existência se dissolve a compaixão, a ternura, uma compreensão mais aguda e sensível da pessoa humana e de si mesmo. A experiência da vida se torna apenas um renascer contínuo para o fim.
Mas é claro que o obscurecimento do amor eterno só é possível com a destruição da Fé. Porque o amor exige Fé na grandeza daquilo que construímos, um objeto ou um relacionamento, e na sua capacidade de exteriorizar um sentimento infinito e universal: o do artífice maior que a tudo dá sentido. Porque a relação entre o amor e a eternidade nos dá percepção de um sentido maior para tudo que fazemos, continuação de algo muito maior que nós, que nossas vidas e que a existência do universo.
Na grandeza do momento, na simplicidade absoluta do instante, no ato de existir, nos encontramos com essa intenção misteriosa, e a fazemos nossa para o mundo. O amor é a força que arruma nossas lembranças, que estabelece o limite de nossas escolhas e permite discernir nosso destino diante da consumação de nossos inumeráveis tempos. Ao estar com conhecidos, colegas, amigos, família, filhos e pais, ou nosso mais íntimo parceiro, em lugares tumultuados ou silenciosos, diante das objetos construídos pelas nossas mãos, ou diante de altares, na penumbra dos templos, é o amor que garante a pertinência das nossas intenções e sentidos.
O amor é o princípio de tudo e também o seu final. Um dos grandes desafios neste mundo de tantos fragmentos é alcançar este amor e ser digno dele. Amando e vencendo o mundo.
1 TOMÁS DE AQUINO, Santo: Suma Teológica. Vol. 2. São Paulo, Loyola, 2005. Q 45, art. 6. P. 58
2 MARCUSE, Herbert: Eros e civilização: Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. p. 197
3 LE GOFF, Jacques: "Labor time in the 'crisis' of the fourteenth century: from medieval time to modern time" in LE GOFF, Jacques: Time, work and culture in the Middle Ages. The University of Chicago Press, 1980. p.48
4 PALTRINIERI, Luca: "Nature" in LAWLOR, Leonard (ed.): The Cambridge Foucault lexicon. Cambridge University Press, 2014. P.311
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