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Brecht, Goya, e o terror da utopia.


por Edgard Leite, Diretor do Instituto Realitas


Bertold Brecht (1898-1956) escreveu, certa vez, um poema assustador. Chamava-se Interrogações a um Homem Bom.


O texto tornou-se tristemente famoso, pois revelou muitas coisas impressionantes sobre a política do século XX. E, aparentemente, também sobre a do século XXI.


Num momento anterior chamamos a atenção para uma importante reflexão de Agildo Barata, sobre a propaganda política soviética:


Segundo ele, esta “não era tão somente mentirosa, ela dizia o oposto da verdade”.

Essa intuição de Agildo Barata talvez seja a coisa mais interessante do seu livro Vida de um Revolucionário.


De fato, ele aqui foi ao cerne não apenas da natureza da narrativa política revolucionária, mas também da sua dimensão moral.


Primeiro, o fundamento mentiroso, em si, da narrativa: podemos construir uma sociedade sem desigualdades?


Os homens são desiguais. E a desigualdade é mesmo a própria essência da condição humana. Cada ser é diferente do outro. Geneticamente diferente, inclusive.


É essa desigualdade que permite, em seus aspectos agregadores (a busca do igual) e desagregadores (a ênfase no diferente), a própria experiência do humano. Que é, essencialmente, paradoxal: busca o outro, e a si próprio, almeja o espírito, e o mundo. Ao mesmo tempo.


E tal desigualdade não pode ser suprimida, porque senão suprime-se a humanidade, ou aquilo que o humano é: paradoxo. Realidade esta que, na sua tentativa de solução, conduz à tomada de decisões: o grande momento da consciência.


A União Soviética buscava ser uma sociedade de iguais?


A afirmação de Agildo Barata pressupõe uma resposta lúgubre: nunca buscou ser. Aquilo era uma mentira. Tratava-se da tentativa de imposição de um modelo utópico que, desde o princípio, apenas serviu para legitimar desigualdades.


Os dirigentes comunistas administravam hierarquias cruéis e governavam sobre os povos, cujos direitos à existência, isto é, à liberdade e à vida, eram sistematicamente negados em prol do hipotético sucesso de um modelo.


Este se realizaria não no presente, mas no futuro. Para além da vida de todos que ali estavam.


Em vida, portanto, não só haveria feroz desigualdade, mas também opressão política. Isso porque, para suprimir a desigualdade, era necessária uma desigualdade nunca antes vista.


Então, escreveu Agildo Barata, isso era uma mentira. Não apenas porque, no futuro, estaremos todos mortos, como escreveu Lord Keynes.


Mas também porque a igualdade, naquele modelo, era retórica para legitimar desigualdades. O que é compreensível e previsível, porque a desigualdade é natureza da condição humana.


Mas, nesse caso, era uma desigualdade que buscava destruir a sua própria percepção como desigualdade. Destruir o senso de discernimento das consciências sobre a tensão que advém dos paradoxos da vida e da capacidade de tomada de decisões que surge dessa tensão.


Mas Agildo Barata ainda disse outra coisa: a propaganda política socialista era mentirosa porque também dizia “o oposto da verdade”.


Isto é, ela invertia a análise do mundo real. Trocava os sinais de avaliação. E isso tinha fortes implicações morais.


Ele se referia aos processos de Moscou, nos anos 30. Mas poderia se referir a todos os julgamentos políticos dos movimentos revolucionários.


E, talvez, aos seus próprios, sobre os eventos da tentativa comunista de tomar o poder, em 1935, no 3o. R.I., no Rio de Janeiro.


Existia um agir bem, naquela narrativa?


Sim, agir bem era acompanhar o projeto utópico, de busca da igualdade (o que, em si, era uma mentira, como vimos, mas vamos adiante).


Mas para agir bem nessa direção, a pessoa tinha que aceitar a desigualdade, mas não considerá-la como tal. Mas sim como representação da superação do paradoxo, e se submeter ao que se dizia ser a utopia, pelos que exerciam o poder.


Se a pessoa, corretamente, segundo Agildo Barata, defendesse o projeto utópico, o da igualdade, mas, para isso, fosse necessário identificar a desigualdade, e entende-la como tal, o agir deixava de ser correto.


Dava-se então, na narrativa, o oposto da verdade, porque quem matava e perseguia, Stálin e seus seguidores, entendiam-se como os revolucionários, libertadores.


Já aqueles outros que buscavam a igualdade, mas denunciavam o poder da desigualdade, eram entendidos como opressores. Mesmo que não tivessem qualquer poder.


E, portanto, como comprovou o período estalinista, tais pessoas deveriam ser eliminadas.


Basicamente porque portavam o paradoxo: percebiam que na busca da igualdade se praticava a desigualdade. E exteriorizavam tal questão nas consciências. E tomavam decisões para solucionar tal incongruência.


Eram o humano real revelado e, portanto, deveriam ser exterminados.


Eliminados fisicamente, muitas vezes. Outras vezes, basicamente, pela anulação da suas consciências.


Muitos foram mortos, de fato. Mas multidão foi segregada, ignorada, afastada do convívio e das afetividades. Inserida em espirais de silêncio.


Brecht escreveu, com muita clareza, sobre isso, em seu aterrorizante poema Interrogações a um Homem Bom:


"Avança: ouvimos dizer que és um homem bom”.


Esse princípio coloca inicialmente a questão moral como motor da sua experiência poética. Alguém diz que você é bom. O que o caracteriza como bom?


Respondeu Brecht:


"Não te deixas comprar, mas o raio

que incendeia a casa, também não

pode ser comprado.

Manténs a tua palavra.

Mas que palavra disseste?

És honesto, dás a tua opinião.

Mas que opinião?

És corajoso.

Mas contra quem?

És sábio.

Mas para quem?

Não tens em conta os teus interesses pessoais.

Que interesses consideras, então?

És um bom amigo.

Mas serás também um bom amigo de gente boa?”


Todas essas boas atitudes morais: a honestidade, a coragem, a capacidade de externar opinião, a sabedoria, o altruísmo, a amizade, não são valores absolutos, segundo Brecht.


O ato bom se configura em função daquilo a que serve. Serve à utopia igualitária? Não. Serve à “gente boa”? Não. Logo...


A quem serve? Certamente serve à solução dos paradoxos morais do ser. Que Marx, certa vez entendeu como "interesse privado", ou "capricho pessoal". É útil para que o ser individual tome decisões. Mas não serve à utopia futura.


Nesse caso, sem dúvida, o poema é um manifesto de forte relativismo moral. Porque os princípios que norteiam o projeto utópico são mutáveis, não eternos. Principalmente em função da política e das necessidades de ação. Já que se baseiam no mundo, que é permanente mudança.


A busca de uma conduta que permita, a cada um, equacionar os seus próprios paradoxos de consciência, e torná-lo um homem bom, é desqualificada e minimizada.


Pois nenhum desses elementos se sustenta diante da utopia igualitária. Que suprime toda desigualdade e todo paradoxo.


Mas Brecht poderia apenas dizer que isso é errado, na sua visão. Que ele não concorda com essa perspectiva. Mas não. Ele vai adiante:


"Agora escuta: sabemos

que és nosso inimigo. Por isso

vamos encostar-te ao paredão.

Mas tendo em conta os teus méritos

e boas qualidades

vamos encostar-te a um bom paredão e matar-te

com uma boa bala de uma boa espingarda e enterrar-te

com uma boa pá na boa terra."


O homem paradoxal, o homem que busca tomar decisões morais consistentes, causa tal horror (ao autor do poema, no caso, e ao sistema socialista, como um todo), que a sua própria existência física não pode ser tolerada. O verdadeiro bem, para o ser que pondera sobre o valor dos atos, é a morte.


O caráter homicida e genocida do modelo é, aqui, claramente expresso, e apoiado, por Bertold Brecht. A utopia instala, de sua parte, um puro horror nas relações políticas. Há ódio, em Brecht? Diríamos que há, acima de tudo, terror pela paradoxal existência humana.


E principalmente perde-se aqui toda consistência e pertinência do ato moral. Ele não é, em hipótese alguma, relevante. Não há bem ou mal, apenas a utopia. O que importa é a eliminação do paradoxo. Do ser e das sociedades.


Isso, embora seja uma característica da política revolucionária do século XX e XXI, tem suas raízes nos séculos XVIII e XIX. Provavelmente tal fenômeno está ligado aos efeitos morais desastrosos da revolução francesa.


Esta dissolveu totalmente qualquer regra moral objetiva no exercício da política.Colocou em relevo apenas a utopia.


Uma boa resposta a essa política, ou, talvez, uma resposta fundadora, foi dada no icônico quadro de Francisco Goya (1746- 1828), intitulado: El tres de mayo de 1808 en Madrid ou Los fusilamientos de la montaña del Príncipe Pío ou Los fusilamientos del tres de mayo.


Francisco Goya foi um pintor espanhol que viveu com muita intensidade as transformações políticas decorrentes da Revolução Francesa.


Napoleão Bonaparte, o campeão do liberalismo revolucionário, empreendeu uma campanha libertadora pela Europa, que derrubou monarcas absolutos, emancipou judeus e estabeleceu ordens políticas seculares por todos os lados. No que nos interessa, o Imperador dos franceses depôs o rei absoluto espanhol Fernando VII.


No tumulto dos acontecimentos, a população de Madrid revoltou-se contra os franceses. Uma rebelião nacional, paradoxal, onde se mesclavam tanto o desejo por um monarca nacional, quanto a recusa do liberalismo revolucionário francês.


Goya retratou a violenta repressão das tropas francesas, que cumpriram as ordens de execução em massa. No seu quadro, essas forças repressoras são aquelas que, exatamente em nome da utopia revolucionária francesa, relativizam o bem, como todos os pensamentos utópicos o farão depois.


Consideram bom o fuzilar. Não apenas necessário.


No seu quadro, as tropas repressoras aparecem indistintas. Sem brilho e sem almas. Todos os soldados são iguais. Embora representem a existência da desigualdade - que quer impor a igualdade. Pois Napoleão queria levar o espírito constitucional aos espanhóis.


Na sua obra, os espanhóis, diante desses assassinos, insurgem-se em pluralidade, são diferentes entre si. Suas atitudes são muitas: podemos ver alguns com medo, outros perplexos, pelo menos um mostra absoluta coragem. Puro paradoxo.


Um deles, o que veste uma camisa branca, ostenta, na palma de sua mão direita, um estigma de Jesus. A fonte da sua bondade, portanto, repousa em algo maior que o mundo. E por isso ele é bom. Seu valor, o da liberdade, é absoluto.


A utopia da igualdade, assim, massacra o homem. Por isso Goya retrata o ser erguendo-se, em sua desigualdade, contra os iguais. Em Goya, a morte é crime. E a utopia napoleônica, criminosa.


Neste poema incrível e revelador, portanto, Brecht está claramente ao lado dos facínoras do dia 3 de maio. E seria retratado por Goya apoiando a chacina.


E se Agildo Barata tivesse visto esse quadro com atenção talvez o pudesse entender como representação do significado maior da mentira e da inversão da verdade próprias da propaganda revolucionária.


É o paradoxo humano, e a liberdade que o ser anseia, para escolher, para decidir, o principal alvo dos movimentos e dos regimes que se propõem a consolidar a igualdade impossível.



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