Conheci Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) anos antes dele vir a ser meu orientador de doutorado. Era uma pessoa educada, fina de gosto, amante da música e da ópera, leitor de coisas interessantes e diferentes. Nos tornamos amigos, inicialmente, porque tínhamos igual tendência a gostar de literatura fantástica. Principalmente de ficção-científica: “o imaginário do mundo contemporâneo”, como ele a denominava. O encantamento pela música de concerto e ópera consolidou diálogos singulares e sempre interessantes, evidentemente. Em Nova York, nos anos 90, tivemos a oportunidade de assistir a uma Madame Butterfly no Lincoln Center- infelizmente decepcionante.
Mas talvez o que mais nos aproximava era uma curiosidade intensa por temas dissonantes, desconhecidos, originais. Coisas que as pessoas em geral não sabiam da existência ou eram evitadas por serem difíceis de estudo ou de descrição intelectual. Nos comportávamos um pouco como os personagens de H.P. Lovecraft (autor que ele apreciava), que viviam na universidade mas gostavam de frequentar livros ignorados nas bibliotecas e as coisas que estavam na escuridão do universo de temas conhecidos. Por exemplo, ele gostava de estudar Egito antigo e eu, a Índia.
Ciro, no entanto, era marxista. Mas um marxista de gabinete. Não lhe interessava questões da organização política do então chamado “socialismo real”. Foi ele que, uma vez, me disse uma coisa importantíssima: “a verdade é que Marx nunca definiu o conceito de classe social”. Essa observação mostrava, com muita clareza, a fragilidade teórica e filosófica fundadora de um sistema que ele, paradoxalmente, defendia.
O que acontecia é que ele aplicava essa razão marxista ao mundo com o objetivo de elaborar narrativas estáveis, que pudessem sustentar uma explicação das coisas que acontecem tendo em conta apenas causas materiais. Mas o fazia com muita honestidade e qualidade, pois sua lógica era sólida. Nele eu percebia esse sentido mais profundo da amizade, no qual não importa muito as circunstâncias, mas aquilo que a pessoa é. E ele era bom e honesto. E muito crítico de algumas das fragilidades do pensamento universitário de nosso tempo. Principalmente da falta de substância e da desonestidade intelectual.
Seu orientador de doutorado foi Frederic Mauro (1921-2001), autor de um livro relevante, mas estranho e quase fantástico, pela forma como Mauro entendia números, que é Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1620). Mauro, por sua vez, era discípulo de Fernand Braudel (1902-1985), o pensador da história das longas temporalidades e dos grandes espaços. Braudel foi orientado por Georges Pagès (1867-1939), cuja tese de doutorado foi o O Grande Eleitor e Luis XIV (1660-1688), sobre Frederico-Guilherme de Brandenburgo e a gênese de um sentimento nacional germânico. Seus orientadores, ao que consta, foram Ernest Lavisse (1842-1922), sucessor de Fustel de Coulanges (1830-1889), na École Normale Supérieure, e Gabriel Monod (1844-1912), historiador francês de formação alemã.
Essa genealogia acadêmica diz muito ou nada, dependendo de como a entendemos. Eu, que sempre a conheci, tinha muito respeito por Ciro Flamarion, pois o considerava mestre portador de uma linhagem historiográfica antiga, muito consistente. Ter sido aceito como seu orientando me parecia um ato de imensa consideração e reconhecimento. E como gostava muito de Pagès, e conhecia sua obra, me surpreendia pelas permanências que podia identificar entre este distante historiador e Ciro. Recorro sempre ao obituário de Georges Pagès, escrito por Pierre Reouvin (1893-1974):
"Pagès tinha uma sensibilidade, uma delicadeza que se manifestava em todas as ocasiões. Ele era bom e entendia em meia palavra as tristezas ou sofrimentos dos outros. Ele tinha no mais alto grau essa retidão, essa lealdade, essa firmeza de caráter que inspira amizade e respeito. Ele manifestava, sem afetação, uma independência que era o corolário de seu perfeito desinteresse".
E como professor,
"Ensinava não apenas para difundir conhecimento e treinar a mente de seus alunos, mas também para dar-lhes algo de seu coração". (Revue Historique, vols. 188-189, p.183-184).
Ciro Flamarion era assim, um eco distante desse seu ancestral acadêmico. Diante desse mistério, eu, normalmente, me curvava respeitosamente, e ainda me curvo.
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