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Índia, espelho de nossa vocação espiritual

As sociedades ocidentais, nos últimos séculos, passam por um período de secularização do pensamento, de atitudes e de expectativas.

Alguns efeitos desse movimento são conhecidos.


Por exemplo, o afastamento crescente do sentimento de necessidade de justificação espiritual. A incapacidade de compreender o valor e o significado dos nossos textos sagrados. O distanciamento dos elementos subjetivos que moldam a existência. O desprezo solene pela sabedoria que advém da tradição. O estranhamento diante da ideia de Deus.

A nossa crescente indigência espiritual e existencial está ligada a esse vazio de sentidos maiores, eternos. Tal vazio não pode ser preenchido por nada neste mundo - o qual, sendo absolutamente transitório, é incapaz de preencher algo de forma estável ou duradoura.
Tal descolamento entre tempo e eternidade tem efeitos na forma como vemos a nós mesmos e o mundo.

Grande parte do interesse que os habitantes secularizados da Europa e das Américas têm pela Índia está na persistência, naquela cultura, de elementos que, paradoxalmente, fazemos questão de combater em nossos próprios espaços.


Ali podemos encontrar o império da justificação espiritual. A reverência aos textos sagrados. A percepção de que é a subjetividade do mundo o elemento delineador da objetividade. O respeito por aquilo que a tradição estabeleceu como moral e ético, bem e mal, certo e errado. A onipresença de Deus e do sagrado no mundo.


Não é outra a razão pela qual a descoberta do Bhagavad Gita, pelo pensamento ocidental, tenha coincidido com a crise de nossas crenças metafísicas, cujo caminho foi consolidado pelo Iluminismo.


Há na iniciativa dos fundadores da pioneira Asiatic Society de Bengala, em 1784, especialmente William Jones (1746–1794) e Charles Wilkins (1749-1836) (o autor da primeira tradução do Bhagavad Gita), essa necessidade de resgatar os elementos conceituais, simbólicos e espirituais, que sustentam a grandeza da civilização hindu.


O envolvimento desses europeus no assunto não era meramente político, mas entranhado de um fascínio crescente e envolvente pela grandeza do espírito que estava presente naquela tradição. Fascínio advindo de um sentimento da insuficiência das nossas fontes religiosas e da precariedade política de nossas crenças. O que levou-os a admirar profundamente as narrativas clássicas hindus e seus conteúdos.


Nos século XIX e XX, a pioneira recepção intelectual que o Ocidente deu à obra de Paramahansa Ramakrishna (1836-1866), e à do seu mais avançado discípulo, Swami Vivekananda (1863-1902), deixou patente que a secularização fez estragos significativos nas nossas próprias convicções espirituais, donde nosso ansioso fascínio por outras.


A ideia de que na tradição hindu seria possível encontrar elementos não encontrados na tradição bíblica, emergia do insistente trabalho de desqualificação da nossa própria religião tradicional, pelo Estado secular.


As confissões religiosas diversas, cristãs e judaicas, foram muito feridas por essa secularização estendida, que adentrou dentro da mídia e do sistema educacional público com intensidade, sustentada pelas conquistas científicas e suas ilusões. As principais destas, a de que a morte física seria vencida e a de que o sofrimento humano poderia ser superado através de uma vivência hedonista do mundo.


A jornada mística de Ramakrishna pareceu, a muitos, uma experiência absolutamente singular, incapaz de ser alcançada nas tradições ocidentais, crescentemente racionalistas, críticas da sacralidade textual, seguidoras de um Deus mais temporal que transcendente. Que não parecia dar resposta às tragédias do materialismo.


Alguém poderia apontar, em Santa Tereza de Jesus (1515-1582), ou, em nossa mesma época, São Pio (1887-1968), ou as nossas tradições de exercícios espirituais, ou, no judaísmo, as tradições ligadas à Merkavá, ou às Hekhalot, enigmáticos momentos de experiência do Absoluto. Mesmo em nosso mundo hedonista. Mas as fontes que conduziam à mística, no Ocidente, estavam sufocadas pela densa neblina de uma sociedade na qual, do ponto de vista jurídico e, depois, do ponto de vista existencial, a salvação da Alma tinha menor importância que a conquista de direitos e bens materiais.


Assim não acontecia na Índia. Ali, a presença do divino parecia ser contínua. As pessoas não se curvavam às ilusões da democracia e da ciência, embora por ela, eventualmente, se movessem. Mas entendiam os hindus que o mundo material era ilusório, tudo que aqui se vivia era sopro de vento, e que a Verdade estava além desse mundo. O espírito era mais essencial que o universo visível.


Tal visão da Índia expressava uma demanda oculta, proibida mesmo, algumas vezes, no quadro da sociedade e das instituições ocidentais: a da busca do Espírito, da superioridade do transcendente sobre o imanente, da vivência do divino.


Num mundo ocidental de tantas proibições, no que diz respeito à Fé, crescentes nos últimos dois séculos, de tantas inconsistências morais, de tanta desqualificação das instituições religiosas, violentamente combatidas, a Índia representou um seguro e gratificante escoadouro para ansiedades espirituais reprimidas ou controladas.


Ali, ao contrário daqui, a tradição ainda sustentava a moral. O Deus secularizado não existia: ele era presença espiritual contínua. O descrédito das instituições religiosas e de nossas crenças não era conhecido: os líderes religiosos orgulhavam-se de suas heranças. Sua mensagem, mesmo quando obscura, era sagrada. Os livros antigos eram a palavra de Deus, apenas - o que queria dizer tudo.

A aproximação que fazemos à Índia não deixa de ser, portanto, uma aproximação às nossas próprias demandas, necessidades e espírito sufocados. A Índia é um espelho de nossa vocação espiritual oculta.

Nela está presente aquilo que aqui é crescentemente proibido: a doçura que advêm da vivência do Espírito de Deus, do Absoluto, e da moral que dele emana, e que ilumina os passos de nossas condutas. Que nos coloca diante da Eternidade através do reconhecimento das ilusões do mundo.


Assim, no fluxo continuo de ideias, reflexões e experiências espirituais que nos vêm da Índia, partilhamos o sentimento de pertencer a um universo no qual o visível é apenas uma parte superficial do existente.


Reforçamos, portanto, em nós mesmos, a capacidade de perceber o encantamento do sagrado e o maravilhoso do divino.


Como espelho, por fim, a Índia mostra a nós mesmos a nossa grandeza espiritual. A nossa capacidade de entendimento e percepção dos movimentos sutis pelos quais o ser pode se aproximar do invisível.


Mas mostra ainda mais: o entendimento com que Charles Wilkins se aproxima do Bhagavad Gita não era inovação, nem reação ao proibido, mas fruto de uma tradição espiritual e intelectual gloriosa, que, mesmo proibida, ou negada, nos capacitou e capacita culturalmente para aproximarmo-nos dos outros buscando e reconhecendo, sempre, o Espírito.


A Índia espelha nossas origens, tradições, heranças, e nos permite reencontrá-las, em outros da cultura, para além das falácias e críticas do Iluminismo. Pois nossa capacidade de nos encontrar no Gita é eco espelhado de Isaias 56:7, profundamente entranhado em nossa percepção do sagrado, mesmo que não o percebamos:


“Também os levarei ao meu santo monte, e os alegrarei na minha casa de oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no meu altar; porque a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos.”

O encantamento pela Índia é caminho para o coração de uma tradição espiritual milenar, e também, simultaneamente, para nossas próprias fontes espirituais, também milenares, e igualmente profundas.

Olhando a Índia, o fazemos de acordo com a natureza de nossas raízes. Evocamos o espírito messiânico e universalista das fontes bíblicas. Mesmo que a opressão, no nosso mundo presente (ou será que em todos os mundos, inclusive os passados?), não nos permita, com a amplitude necessária, tornar tal espírito força consciente e instância redentora.



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