por Edgard Leite (Diretor do Instituto Realitas)
Num texto anterior tratamos de uma figura essencial na Intentona Comunista de 1935: o secretário-geral do PCB, Antonio Maciel Bonfim, dito Miranda.
Miranda é um dos responsáveis pela tragédia que se abateu sobre o país no decorrer do levante insensato de novembro de 1935. Um dos, mas não o único responsável.
Se Miranda foi o mentiroso mais estridente, aquele que elaborava as mais incríveis mentiras sobre a situação pré-revolucionária no Brasil, o fazia, no entanto, por delegação de todos.
E por isso ele era o líder do Partido.
Era considerado o mais apto para elaborar mentiras descabidas e impressionantes. Que moviam as consciências de uma maneira avassaladora. A intenção dessas mentiras era empurrar pessoas iludidas numa determinada direção.
O papel corruptor de Miranda era, assim, evidente.
Pois aquele que, numa posição de autoridade, fala a mentira, como bem escreveu Santo Agostinho, deseja ser visto como "o mestre da verdade”. Logo, ao mentir ao seus seguidores ele está "ensinando a mentir” (Contra a Mentira:37).
Mas ele, Miranda, aprendeu a mentir na convivência com os soviéticos e, principalmente, na literatura comunista. Toda esta é mentirosa, mas se coloca como verdadeira.
Aprendeu muito bem. Pois como poderia haver um levante no Brasil, em 1935, se não fosse movido pelas mentiras mais extravagantes?
Mas a trajetória pessoal de Miranda não foi a de seguir no mundo da mentira. Como muitos. Na verdade, tão profundo foi, na prática da falsidade, que, quando a verdade invadiu sua vida, o fez de uma maneira avassaladora e terrível. Na mesma medida das mentiras que construiu. Para ele, o encontro com a verdade foi absolutamente transformadora, na medida em que trágica.
Miranda namorava uma adolescente, chamada Elvira Cupello Colônio, dita Elza. O irmão dela, Luiz Cupello Colônio, era também militante do PCB, e seu amigo.
No decorrer das prisões que se seguiram ao previsível colapso da Intentona de 1935, Miranda acabou detido.
Como muitos dos líderes comunistas ainda não tinham sido presos, Miranda foi torturado, a fim de revelar informações que levassem à captura de seus companheiros.
Os dirigentes, em liberdade, ficaram temerosos do ir e vir de sua namorada Elza. Ela pouco sabia das coisas. No entanto, acreditavam que ela era, ou poderia vir a ser, responsável pelas prisões que estavam ocorrendo, tão previsíveis, aliás, como o fracasso do movimento. Conversaram sobre o assunto e decidiram pela sua execução. Sim, execução.
Elza foi, assim, estrangulada por quatro militantes. Seu corpo quebrado para que coubesse em um saco. E assim foi enterrada. No quintal de uma casa.
A seu irmão, preocupado e perguntando aqui e ali aonde ela estaria, mentiam os dirigentes, dizendo que estava em “local seguro”, provavelmente na Rússia. Mais mentiras.
A descoberta, por fim, de que tinha sido assassinada foi chocante, portanto, para Miranda e seu irmão. Ambos a amavam, e muito. Miranda percebeu, naquele momento, que as suas mentiras, longe de conduzirem a sociedade a uma feliz sociedade comunista, conduziram ao desastre da sua vida pessoal.
Percebeu também que seus companheiros não o eram, na verdade. Não lhe tinham qualquer amizade ou sentimento. Apenas respondiam à necessidade de manter a mentira - da qual fora ele um dos autores.
O irmão de Elza, horrorizado, assinou de próprio punho uma declaração em que reconhecia o seu cadáver, exumado pela polícia, e se manifestava contra as mentiras ditas a ele (sobre o destino de sua irmã) e rompia com o Partido Comunista (ou seja, também com as mentiras do Partido).
Miranda, intimamente destruído por tudo que aconteceu, e também muito prejudicado, fisicamente, pelas torturas a que fora submetido, cumpriu sua pena. Foi libertado em 1940. Tinha perdido um rim, em função dos maus-tratos e condições da prisão, e estava tuberculoso.
Miserável, descartado pelo Partido, sobre ele foram lançadas todo tipo de calúnias. "Miranda certamente era um traidor", diziam, "policial infiltrado", com toda probalidade. Responsável pelas prisões e pelo fracasso da Intentona. E assim por diante.
Verdades? Não importava. Não eram juízos extraídos de documentos. Todos haviam aprendido a mentir. E isso era o que importava. A verdade seguia sendo secundária.
Retirando-se da vida pública, Antonio Manoel Bonfim passou então a uma jornada individual dolorosa. Desta nunca se falou, pelo menos até o momento. E que deve ser recuperada. Principalmente por conta da lembrança dessa tão grande injustiça, a morte de uma inocente. Ato que destruiu uma família e que está inserido no âmbito da destruição de muitas consciências.
Sabemos de sua jornada posterior por conta de uma curta entrevista do Pe. Arlindo Vieira sj, publicado em vários jornais brasileiros, em 1947. O Pe. Arlindo era, na época, um expoente conservador, que notabilizou-se pela sua crítica ao pensamento de Jacques Maritain, no Brasil.
O Pe. Arlindo deu conta, nessa entrevista, que “na madrugada do dia 2 de abril [1947], faleceu, piamente nesta capital (Rio), munido de todos os sacramentos da Igreja, o baiano Antonio Maciel do Bonfim. Era conhecido nas rodas comunistas pelo nome de Miranda” (O Apóstolo, 1/9/1947).
Bonfim solicitou a presença do Pe. Arlindo quando estava internado na Casa de Saúde São José. O chamou “porque queria reconciliar-se com Deus”.
Pelos próximos dois meses, o Pe Arlindo esteve com ele. Acompanhando-o espiritualmente. Ali, Miranda lhe confidenciou que “pedia a Deus a saúde, a fim de poder reparar o mal que havia feito”.
Pe. Arlindo nos conta que Bonfim se “referia com carinho à sua antiga companheira [Elvira Cupello Colônio, Elza], simples, ingênua, afetuosa” e que sonhara casar-se com ela (Correio da Manhã, 7/5/1947). Isto é, nunca a esquecera.
“Sentado numa poltrona, ofegante, manifestou o desejo de fazer uma longa confissão de toda sua vida (…) ‘quero contar-lhe tudo. Deus quis humilhar-me, permitindo que sofresse tanto e caísse tão baixo, porque o homem quer voltar-se a Deus’. Ao receber a absolvição desfez-se em pranto copioso”.
“Dominado por tais sentimentos”, conta o Pe. Arlindo, "esse homem reto, esse convertido ilustre, entregou sua alma a Deus na mesma semana em que comemorávamos os grandes mistérios da Redenção. Seu médico assistente, ao vê-lo morrer placidamente, exclamou: ‘Este homem morreu como um justo’”
É bom expor a história de Antonio Maciel Bonfim, o Miranda. Uma história linda, na sua trágica realidade.
Porque, acima de tudo, sua vida expressa a tragédia que se abre ao ser humano quando se perde no domínio da mentira, no afastamento da verdade.
Seus atos mentirosos, na política, não vitimaram apenas a sociedade, mas também sua possibilidade real de amar e ser amado. Possibilidade que só se dá quando buscamos, de fato, e com humildade, a verdade do espírito. A nossa própria verdade interior.
Bonfim, como vimos, não negou essa verdade absurda que invadiu de forma tão trágica sua vida e a de tantos. Ao contrário, buscou-a e fez as pazes com ela. De forma solitária, encarou corajosamente aquilo que produziu em sua vida.
Teve a profunda humildade de reconhecer que o ser humano não pode, com a sua palavra, criar um mundo. Como querem sempre os mentirosos.
E que isso, longe de ser bom, apenas coloca o ser contra o mundo. Aceitar o império da verdade lhe pareceu, ao que tudo indica, a única solução para pacificar sua consciência, tão repleta de mortos e mentiras.
“Morreu como um justo”, disse o anônimo médico da Clínica São José. Certamente que sim, pois ergueu-se do terrível pântano da mentira e abraçou, por fim, a verdade.
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