top of page

Origens, fins

Atualizado: 21 de set.

ree

A singularidade da pessoa humana resulta de sua substância única, e a sua personalidade é, em parte, determinada pela herança que recebe de seus ancestrais, no corpo que expressa essa substância. E tal realidade aprofunda a singularidade de cada um. A descoberta do genoma humano esclareceu algo sobre esses elementos herdados que contribuem na nossa forma de ser no tempo, sendo pessoas.


Existem muitas jornadas, deslocamentos humanos pelo mundo, encontros e desencontros entre populações e culturas, para que cheguemos a ser o aqui somos. Ou, ainda melhor, o que sou, o que cada um é. Essas histórias anteriores dizem algo sobre nós, enquanto pessoas, e como reagimos à relação que temos com este mundo finito.


Temos presente em nossa realidade dores e alegrias antigas que ancestrais desconhecidos viveram e suas permanências ajudam a formar nossa percepção do instante, do passado e do futuro. E dão, muitas vezes, controverso fundamento para nossos atos e nossas intenções. O genoma de cada um aponta, com alguma clareza, essas presenças arcaicas e presentes.


Há muito, no Homem, que advém dessas marcas ocultas e silenciosas. Muitas vezes descobrimos, com espanto, que percepções e entendimentos das coisas já foram de outros, antes de nós. E que sentimentos antigos ainda vivem na nossa consciência, porque úteis para entender a vida e assim são sobreviventes notáveis do emaranhado de heranças que portamos.


Um livro como o do João Carlos Nara, Silêncios que gritam, já clássico, é um texto que nos faz voltar para o interior de nossa consciência e buscar aquelas presenças que, esgotadas no passado, indicam, no entanto, marcadores invisíveis na nossa personalidade. O livro trata das listagens que registravam sepultamentos de pessoas escravizadas no assim chamado "cemitério dos pretos novos". Este era localizado no Valongo, zona portuária do Rio de Janeiro, e funcionou entre 1769-1830. Ali eram inumados africanos que faleciam nos galpões nos quais ficavam aprisionados, ao chegarem ao Rio de Janeiro.


Os documentos registram os óbitos, os nomes dos mortos, as marcas dos proprietários que eram gravadas à ferro no corpo dos cativos, os barcos nos quais vieram, e os portos de origem, onde foram embarcados: Cabo Verde, Calabar, Motembo, Rio Zaire, Luanda, Ambriz, Quelimane, Cabinda, Moçambique, Angola, Benguela, Rio dos Camarões, Costa da Mina, São Tomé.


Essas origens, aponta Nara, "não correspondiam a seus pertencimentos étnicos originais",  e, eventualmente, nas listagens vinham designadas as suas nações de fato: Macua, Dongo, Baçã, Quiçanda, Song, Nhambane, Camundá, Muanje, Mixicongo, Ganguela, Monjolo, Rebolo, Cassange, Moumbe, Cassangogue, Osã, Calabar, Mina, Congo.


Todas esses povos estão nos livros de história da África. Eram comunidades milenares com idiomas e visões de mundo próprios e atravessaram, ao longo do tempo, desafios imensos de sobrevivência, lá onde existiam, para tornarem-se e serem reconhecidas como Mina ou Congo. Cada um daqueles nomeados trazia em si séculos de poderosas identidades étnicas, que o escrivão reconhece e registra com certeza: Mina, Congo.


As atrocidades do tráfico foram amplas. O terror da travessia do Atlântico, ainda hoje um desafio náutico, feita em barcos à vela, de diferentes tamanhos, não foi estranho a todos que para aqui, Brasil, vieram, de outros lugares do mundo. Os portugueses, por exemplo. Mas faze-la contra a vontade, acorrentados, num porão quase sem ventilação e nenhuma higiene, sujeitos a violências, ao terror do desconhecido e ao movimento iminente da morte que vinha de todos os lados, apenas esses nossos ancestrais a fizeram.


Todos esses povos africanos tinham suas próprias tradições e percepções do mundo. E, cada uma dessas pessoas, a visão única de tudo que estava acontecendo. Ao sobreviverem à travessia, e aos galpões do Valongo, tornaram-se nossos ancestrais. Os seus rostos, personalidades, dores e amores não podem ser recuperados pela memória ou pela genética. Mas seus marcadores estão dentro de nós, silenciosos, testemunhos de uma resistência vitoriosa aos desafios mortais decorrentes da transitoriedade do mundo.


As nossas origens falam, assim, de nós e de nossos fins. Os sobreviventes do horror da escravidão nos transmitem a experiência de uma atitude de resiliência diante do sofrimento. Esta contém a ternura e o amor, diante daqueles sepultados no Oceano ou no Valongo. Porta a grandeza de realidades étnicas profundas. E assegura, em nossa consciência, que podemos vencer a morte e o mundo e seguir com confiança, mesmo que com dor, a jornada nesse oceano imenso e eterno que é a vida.



__________________

MEYER, Hans: The Philosophy of St Thomas Aquinas. London, Herder, 1944. p.206

NARA Jr. João Carlos: Silêncios que gritam. Testemunhos da escravidão africana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, LetraCapital, IPB, 2025. p.39

Comentários


  • X
  • Instagram
  • Youtube
  • Amazon
  • Lattes

© 2025 by Edgard Leite

Faça parte da nossa lista de emails

Nunca perca uma atualização

bottom of page