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1956

por Edgard Leite


Os anos 20 e 30 do século XX foram momentos de grande agitação revolucionária. Os acontecimentos da Rússia, em 1917, tiveram um profundo efeito naquelas consciências inquietas com a realidade do mundo.


Parecia, a muitos, que a natureza das coisas podia ser transformada. Que aquilo que é poderia ser outra coisa. E a dita Revolução Russa, de 1917, foi entendida como fundamento para transformações futuras.


Os horrores do processo revolucionário russo, as execuções generalizadas, sumárias ou com processos forjados, as tragédias cotidianas de uma sociedade em profunda crise moral, não pareciam dizer nada a quem não estava lá.


Tudo era à distância, naquela época. O telegrafo aproximava as pessoas, mas o telegrafo era um único caminho, facilmente manipulado ou falsificado. O rádio apareceu um pouco depois, mas também era precário. O que lá acontecia era entendido à luz da imaginação e dos desejos.


E esse delírio era tão cativante que se espalhou pelas consciências ressentidas do mundo, como uma febre. Tantas causas de sofrimento, na vida, encontraram um vingador existencial: a Rússia Soviética.


Lá, assim se acreditava, tudo era feito para que ninguém pudesse ferir alguém, para que a vida fosse uma jornada absolutamente tranquila, sem esforços, sem dores, sem sofrimentos.


Os pais, com suas incompreensões e obrigações, deixavam de existir. Os empregadores e suas demandas sumiam. Não havia necessidades financeiras nem emocionais. Marchava-se para uma sociedade onde todos se mesclavam num comum gozo das coisas boas do mundo: um trabalho leve, um salário suficiente, uma aposentadoria precoce.


Não havia inveja, porque ninguém se sobressaía. Todos eram iguais.


Havia nisso tudo, é claro, a crença de que as religiões enganavam os homens. A complexidade humana com a qual elas lidavam não poderia ser a base da vida.


O ser deveria ser reduzido ao seu mínimo, ao visível: comer, beber (com moderação), morar, trabalhar, dormir, tirar férias, se aposentar, morrer. E, então, desaparecer para sempre.


Esse pensamento, utópico, inebriou multidões.


E, assim, quando, na Rússia, se levavam inocentes ao banco dos réus, quando os lideres do passado se tornavam criminosos, quando multidões morriam de fome, quando a intimidade era considerada ilegal, ninguém se importava.


Porque se perdia o sentimento de identificação com a subjetividade alheia. Só a realização da utopia importava. E nela não havia subjetividade. Não havia alma. Apenas pão (ou se acreditava que nela haveria sempre pão).


Os horrores da Segunda Guerra Mundial aprofundaram as dores humanas. E, assim pareceu, a vitória dos Soviéticos consolidou o caminho da utopia.


Muitos, certamente, perceberam que, para vencer um monstro, o nazismo, fora necessário manipular um outro monstro: a URSS. Mas para aqueles que se inebriavam com a fantasia soviética, o caminho para alcançar o paraíso terrestre parecia ter se aberto, em 1945.


A União Soviética, e Stálin, estavam em um lugar muito especial em muitos corações e mentes, pelo mundo à fora. Como um rebanho conclamado pelo flautista de Hamelim, multidões marchavam, no mundo, na direção do paraíso socialista.


Mas, infelizmente, na União Soviética, não era assim. Os que viviam o paraíso não o consideravam como tal.


Porque os pobres continuavam sendo pobres, e eram humilhados pelos poderosos. Os pais não tinham poder, mas o Estado exercia uma paternidade opressiva, com a qual não havia, ao contrário daquela que vinha dos pais, qualquer diálogo, qualquer sentimento. Qualquer proximidade.


Stálin morreu em 1953. Como exemplo e representação de um modelo, sua imagem continuou na mente de todos. Seu cadáver foi embalsamado e colocado ao lado do corpo de Lenin. No mausoléu.


Ali, visitado obrigatoriamente por todos, pareciam, ambos, adormecidos, mas eram representações do caráter incorruptível de um projeto utópico.


As tensões que existiam, por trás de tudo isso, de certo, não ficaram claras até o dia 25 de fevereiro de 1956.


Nesse dia, o líder soviético Nikita Kruschev proferiu seu chamado “discurso secreto”

no XX Congressso do Partido Comunista da União Soviética.


Certamente não podendo mais resistir às pressões, Kruschev afirmou que "Stalin mostrou em toda uma série de casos sua intolerância, sua brutalidade e seu abuso de poder. (…) escolheu o caminho da repressão e aniquilação física, não só contra os inimigos reais, mas também contra as pessoas que não tinham cometido qualquer crime contra o partido e o governo soviético”.


O discurso teve profunda repercussão na Rússia e fora da Rússia.


Entendeu-se, imediatamente, que o regime soviético era um regime horrível. Que ali atrocidades eram cometidas de forma incontrolável. E com uma legitimidade política monstruosa. Que uma opressão maior que aquelas conhecidas havia se instalado na Rússia. Porque era uma opressão moral até então não conhecida, que destruía a própria complexidade da condição humana.


Para a Rússia, o discurso foi fatal. As tensões sociais se tornaram incontroláveis. Sob diferentes meios, a revelação da verdade foi sendo veiculada dentro da sociedade. Dois escritores se sobressaíram: Solzhenitsyn e Pasternack. Mas muitos outros se ergueram ao longo dos anos que se seguiram.


A União Soviética amargou, a partir de então, um lento processo de estagnação e decadência, que culminou, 30 anos depois, com a explosão da Usina Lenin, na cidade de Chernobyl, na Ucrânia.


Logo depois, em 1991, a União Soviética colapsou. Foi dissolvida, simplesmente. Não foram suficientes os custos em propaganda para mante-la existindo.


No Brasil, o discurso de Kruschev foi recebido também como algo absolutamente surpreendente.


Se tudo em que se acreditava não era verdadeiro, então tudo fora uma ilusão?


Havia sim, na URSS, necessidades financeiras e emocionais. Nem todos lá gozavam das coisas do mundo. O trabalho era cruel e a tecnologia precária. Todos eram muito pobres, mas uma elite governante vivia no luxo e na opulência.


Também lá havia inveja, e ressentimentos.


A experiência do real é relevante para a existência. Podemos viver nas ilusões, sem dúvida, e isso é confortador.


Mas como uma droga, o mundo de paz que advém das ilusões mina aos poucos os elos de sensibilidade com o mundo e vai nos afastando das pessoas que vivem a realidade das coisas.


Agildo Barata (1905-1968), foi um comunista brasileiro, um dos líderes da tentativa comunista de tomar o poder no Brasil, em 1935.


Confrontado com a gravidade de revelações do XX Congresso do PCUS, e com tudo que veio a partir daí, ele escreveu um livro, “Memórias de um Revolucionário”.


Nesse livro, afirmou Barata que “o relatório [de Kruschev] significava que a propaganda soviética não era tão somente mentirosa, ela dizia o oposto da verdade”. Isto é dirigia as pessoas a admirar os opressores, como se oprimidos fossem, e não os oprimidos, tidos perversamente como opressores.


Essa subversão era, certamente, mais perversa que a própria mentira. Ela construía uma consciência moralmente invertida que não apenas afastava as pessoas da realidade, mas também as aprisionava, de forma doentia, na ilusão.


Consolidava a alucinação como elemento de resistência política à realidade da vida e do mundo. Tudo aquilo que evocava a realidade deveria ser entendido como opressor, e eliminado. Assim como os rebelados contra a URSS, vistos como traidores, e não como resistentes.


É a mesma coisa que entender que viver o prazer, livremente, é liberdade, e viver o amor, com toda sua contenção, uma prisão. Quando, na verdade, é ao contrário.


Libertar-se desse pensamento perverso eram bom ou ruim?


Evidentemente que bom. Porque só a verdade liberta. É claro que viver o mundo real é viver com as suas impossibilidades essenciais, com suas frustrações contínuas.


Mas, principalmente, viver no mundo real é aprender a viver com os ressentimentos. Superá-los, mesmo. Entender o valor do perdão, da compaixão. Considerar os seres na sua pluralidade, nos seus defeitos, nas suas grandezas e misérias. Compreender o profundo sentido da desigualdade humana.


Isso é muito mais difícil, mas existencialmente muito mais gratificante, do que persistir no vício, ou na ilusão de que o mundo pode ser um não-mundo. Algo diferente do que ele é.


Mesmo porque é bom ser amigo da verdade. Pois ela sempre aparece em algum momento.


Como apareceu em 1956.

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