A pessoa e suas circunstâncias
- Edgard Leite

- 2 de ago.
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O que é mais importante ao tentarmos entender a pessoa? As circunstâncias, as circunstâncias e a pessoa, conjuntamente, ou, primordialmente, a pessoa, ela mesma? Um espírito pragmático responderia: as três dimensões de entendimento. No entanto, devemos considerar aqui a existência de uma hierarquia clara entre os três olhares, que expressam uma sequência infindável de debates no mundo moderno.
Uma sólida tradição, que vem das origens do Iluminismo e culmina em Marx, afirma, por exemplo, que as circunstâncias é que são importantes, acima de tudo, mais que a pessoa. Aquelas determinam o que as pessoas são. A pessoa é um vazio, cuja estrutura de consciência vai sendo organizada pelas suas necessidades e pela realidade do meio. Neste caso o Homem é muito pouco, ou nada, em si. É pura existência e desaparece com o fim desta.
Tal forma de entender o próximo é, no entanto, uma máquina de surpresas, ilusões e desencantamentos, porque a pessoa constantemente surpreende, ilude e desencanta aqueles que acreditam no império das circunstâncias. Há uma rebelião contínua do ser contra o meio. O problema é que as circunstâncias são sempre mutáveis e assim também mudam os olhares das pessoas sobre as coisas. Logo, considerando-as apenas circunstância, nenhum entendimento duradouro pode ser estabelecido sobre elas e nenhum vínculo pode existir entre todos - que não sejam apenas estabelecidos pelo eventual. Como animal político que somos, essa perspectiva leva a uma implosão permanentemente dos elos e dos compromissos com o bem comum. É possível viver assim? Claro que sim. Mas trata-se de uma existência relacional desprovida de reconhecimento e onde o próximo é sempre visto como um potencial inimigo, porque sempre estranho.
Outra corrente de ideias, que vem também do Iluminismo, valoriza enormemente a interação entre a pessoa e as circunstâncias, e nela encontramos o celebre aforismo de Ortega y Gasset sobre o tema: "o Homem é o Homem e suas circunstâncias". Nesse sentido, a pessoa é algo mais do que aquilo na qual está inserida, embora ela também tenha uma dimensão permanentemente mutável. Isso desqualifica a ideia de que alguém possa ser, em alguma dimensão, eterna, imutável, inalcançável pela mutabilidade das coisas, pela transitoriedade das circunstâncias.
Aqui chegamos, de uma forma ou de outra, a conceber uma pessoa que possui um algo de tudo e um algo de nada, como, provavelmente, está presente na metáfora de Michel Foucault, que entendeu o Homem de nosso tempo como um rosto humano desenhado na areia e dissolvido pelas ondas do mar. Há mais vida aqui que na vida do marxismo, por exemplo, mas essa vida não engendra nunca um tipo de identidade que possa sobreviver imutável à transição epistemológica dos momentos.
Mas há, por fim, a visão bíblica, a visão de Jesus: "amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem" (Mt 5:44). Isto é, desconsiderem as circunstâncias, ou a interação entre a pessoa e estas. A relação deve ser com a pessoa, que existe para além das atitudes que toma ou que é forçada a tomar, que está noutro plano além deste do pântano do mundo, que a envolve e, eventualmente, a sufoca. É certo que a pessoa é corpo e alma, mas ela possui uma autonomia espiritual, que é racional e inteligente, e, como assegurou Meyer,
"está muito acima do restante dos seres materiais e expressa o que há de mais perfeito na natureza. É desta autonomia espiritual que decorre a faculdade de autoestima do homem, a sua determinação em querer e agir, e nela está repousado, especialmente, o importante corolário filosófico de que o homem é um valor em si mesmo e um fim em si mesmo".
O importante e fundamental no entendimento da pessoa seria, portanto, o exercício desse movimento de superação dos redemoinhos de efemeridades que nos envolvem. Trata-se de efetuar a travessia por sobre a correnteza das circunstâncias que a todos separa, e encontrar a autonomia espiritual da pessoa, as suas racionalidade e natural inteligência e reconhecer sua particularidade singular.
Assim olhando a pessoa, tudo que é transitório vai se dissolvendo ao longo do tempo. A profundidade eterna de cada um se torna uma experiência da eternidade da vida e do valor incrível de cada alma, luminosa diante do turbilhão contínuo dos eventos transitórios. Dessa forma nos damos conta da importância extremamente relativa das circunstâncias diante da realidade interior e íntima da criatura humana. Esta é, assim nos parece, a mais elevada forma de entender a pessoa.
MEYER, Hans: The Philosophy of St. Thomas Aquinas. London, Herder, 1944. p.205








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