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Nietzche e o fim da pessoa humana

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A importância de Nietzche é imensa no pensamento contemporâneo. Em grande medida porque, dentro das diferentes perspectivas iluministas, foi ele um dos que melhor entendeu as verdadeiras consequências do processo intelectual que teve início na Europa na modernidade.


Kant, Condorcet, Marx, Comte ou Hegel, pensadores modernos, por exemplo, acreditavam que existia uma razão virtuosa intrínseca ao mundo material, independente da existência de um Deus criador, interventor, transcendente e imanente. Isto é, consideravam que as coisas da materialidade tinham, em si, um fundamento autônomo, que se desenvolvia na direção de ganhos crescentes de qualidade neste mundo. Desconheciam ou menosprezavam a existência de um sentido preexistente ao universo que pudesse condicionar ou estabelecer seus parâmetros de forma prévia.


Daí vinha a crença no progresso, nas leis sociais, nos determinismos concretos, o econômico (por Marx) ou o biológico (a partir de Darwin). Ou seja, entendiam que aquele mundo, descrito pelos epicuristas, este mundo, segundo eles, que se autocriou, engendrava, na aleatoriedade de sua formação, vetores pertinentes, compreensíveis pela razão, que o empurrava adiante em direção à perfeição. E, é claro, o faziam acompanhando o caminho do tempo. Donde a grande importância que atribuíam ao estudo da História.


Nietzche, de forma muito coerente, no entanto, chegou à conclusão de que tudo isso era ilusão. Como não há Deus, o universo é fechado e tudo está apenas nele. Era-lhe evidente que este era "envolto pelo nada". Considerando que qualquer sentido no mundo temporal não possuía vínculos virtuosos ou morais que emergissem de uma dimensão eterna e que tudo nele terminava, morria, só era possível entender a existência como um permanente movimento da vida para realizar-se, de forma efêmera, a "vontade do poder", e que, nesta realização, na efemeridade da conquista, em seu fim, ela voltava-se sobre si mesma, "o eterno retorno do mesmo".


Nietzche foi, assim, pioneiro em apontar tal proposição, não declarada, oculta na negação da eternidade e do infinito como vetores essenciais da realização dos elementos do mundo. Jean-François Lyotard declarou no seu A condição pós-moderna, a "incredulidade" das sociedades diante das metanarrativas. Mas quem primeiro percebeu isso, muito antes do século XX, foi Nietzsche. Para ele não havia como sustentar, num mundo sem eternidade, as nações, os sentidos, o progresso, qualquer valor infinito. A destruição que abalou o século XX foi, de certa forma, por ele intuída. O que havia por trás das nações, das ideologias, do progresso, senão o nada destruidor?


A solução que propunha, ou seja, a destruição, a superação do Homem, sua elevação a um Super-homem, Übermensch, era o inevitável abandono de uma condição afundada em ilusões, a de Deus ou a do progresso: "este mundo é a vontade de poder - e nada além disso! E também vós mesmos sois essa vontade de poder - e nada além disso!".


Vemos aqui a manifestação de uma plataforma até então não claramente discernida no pensamento iluminista: a da subordinação absoluta do ser ao império transitório das circunstâncias. Tal condição situa o Homem exclusivamente no aprisionamento da repetição cíclica do tempo. Como escreveu Nietzsche,  "o Homem é algo que deve ser superado". O que isso quer dizer parece claro: aquilo que entendemos como pessoa humana desaparece quando desaparece a crença em Deus. Sem a eternidade devemos nos tornar algo diferente. Apenas um ser vivente, que, como os animais que nos cercam, luta continuamente por estar vivo e poder repetir o que é vivido, até a morte e a abertura de outras vidas e repetições.


Esse é, portanto, o mais profundo dos horizontes sinalizado para o Homem, pela modernidade. E graças a Nietzsche este objetivo se tornou evidente. Sua morte, demente e incapacitado, de alguma forma metaforiza as consequências mais dramáticas desse misterioso movimento de consciência que faz repousar sobre o vazio a jornada da consciência humana. E que a torna igualmente vazia e absolutamente desesperada.


1 Apud MEYER, Hans: Geschichte der abendländischen Weltanschauung. V. Band- Die Weeltanschauung der Gegenwart. Würzburg, Verlag Ferdinand Schöningh, 1949. p.326

2 LYOTARD, Jean-François: : A condição pós-moderna. Rio de Janeiro, José Olimpio, 2009. p. XVI

3 Apud MEYER, Hans: op.cit. p. 327

4 NIETZSCHE, Friedrich: Thus Spoke Zarathustra: a Book for All and None. Cambridge University Press, 2006. p.5

1 comentário


Douglas Guedes
Douglas Guedes
26 de ago.

Muito bom, imprimi para podermos conversar sobre em aula, caso tenhamos tempo.

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