O problema insolúvel do vazio
- Edgard Leite

- 2 de set.
- 6 min de leitura

A ideia de que o mundo repousa no nada, conclusão à qual chegou Nietzsche ao se dar conta de que não acreditava em Deus, suscitou um problema: do nada pode surgir algo? E se surgir, que tipo de coisa é? Essa dúvida, consciente ou inconsciente, gerou muitas incertezas. Principalmente na consciência daqueles que acreditavam que podiam viver algo concreto num mundo sem Deus, mas não se davam conta de que isso implicava que o universo deveria ser fundamentado sobre o vazio, ou o nada.
Perturbou, por exemplo, a crença dos utopistas, ou dos crentes na ideia de progresso, que aceitaram a ideia de que o mundo era permanentemente transitório, intrinsicamente mutável e em contínuo colapso temporal, por ser desprovido de substâncias eternas. Mas achavam que mesmo assim este poderia produzir estruturas duráveis, dotadas de vetores que aglutinavam mais e mais fenômenos consistentes, incapazes de desagregação.
Depois do colapso das nações, partidos e movimentos sociais diversos, que se tornou claro nas décadas que se seguiram a 1945, muitas dúvidas se instalaram nas consciências transtornadas pela ideia de um mundo sem substância. Muitos começaram a se perguntar se o que o Iluminismo introduzira no mundo não fora apenas bolhas de água fervente que emergiam e desapareciam tornando visível o fantasma do nada. E o que fazia esse nada, senão tornar mandatório ao Homem o imperativo da destruição?
Teria Nietzsche se assustado diante dessa eclosão do vazio no mundo, em nada surpreendente, porque expressão de sua realidade transitória e evanescente, e por isso enlouquecido? Tal tese, possível ou não, é metaforicamente interessante, pois nos lembra a loucura do rei Saul diante do vazio dos objetivos humanos no mundo. Principalmente quando se vive apenas neles, e a sua realidade de desaparecimento aponta a convergência entre as ilusões sobre a infinita potência humana e o eterno retorno da dor.
O problema, no entanto, não é novo, embora seja estranho ao pensamento ocidental, cuja tradição filosófica é marcada pela metafísica e pelo essencialismo, e cuja razão de ser se estrutura na fé na eternidade. Mais de mil anos antes de Nietzche, e com maior prudência, aliás, Buddha havia afirmado o caráter transitório de todas as coisas e, principalmente, que o ser humano não possuía substância eterna, e era exatamente isto: uma espuma no rio Ganges.
Buddha, ele mesmo, no entanto, não se arriscou a afirmar o nada ou o vazio. Pois a simples investigação sobre o assunto desafiava a experiência do nirvana, que se baseava, entre outras coisas, na não especulação sobre semelhantes temas. E não por acaso, evidentemente, mas sim por ser um assunto além da capacidade humana de entendimento. Mas deixou o tema incomodamente aberto, pois negou que o ser vinha da eternidade e sustentou que este era desprovido de essência. O que haveria, para além deste momento absolutamente mortal da existência não lhe interessava.
O assunto, será, no entanto, abordado pela tradição budista mahayana, em suas duas principais vertentes filosóficas, a Sunyavada e a Vijñanavada, principalmente pela primeira. Ao que tudo indica, o tema foi tratado pioneiramente por Nagarjuna, no século II a.C. no seu Madhyamika-sastra. Ali foi estabelecida a "doutrina da não-essencialidade e do vazio (sunya)“. Nagarjuna a entendeu "mais ou menos como um corolário da tradicional doutrina budista". Para Nagarjuna,
"Absolutamente não há coisas,
em parte alguma e nenhuma, que surjam [de novo],
nem de si mesmas, nem do não-ser,
nem de ambos, nem ao acaso."
Não há substâncias, ou essências, que possam explicar as origens das coisas. Isso as torna indefiníveis, tanto diante delas mesmo quanto diante de outras coisas, que também não são suas causas, pois também não possuem substância. Ou
"Se as entidades são relativas,
elas não possuem existência real.
A [fórmula] 'isto sendo, aquilo aparece'
então perde todo o sentido".
Assim, entendeu Dasgupta,
"todas as coisas são relativas e, portanto, indefiníveis em si mesmas, de modo que não há como descobrir suas essências; e, visto que suas essências não são apenas indefiníveis e indescritíveis, mas também incompreensíveis, não se pode dizer que existam".
Para Nagarjuna não existiriam essências, portanto, nem sentidos no mundo. Apenas o vazio. E, assim, continua Dasgupta, "surge uma questão - se as coisas do mundo não possuem essências próprias, como é que elas parecem ter, ou como é que os fenômenos do mundo aparecem a todos? À tal questão, a resposta de Nagarjuna foi a de que a aparência do mundo é como a de miragens ou de sonhos, que não têm realidade própria, mas ainda assim parecem ser reais".
A tranquilidade com que Nagarjuna lida, aqui, com o nada e com o desaparecimento de qualquer metafísica não é, certamente, a de Nietszche, já que a tradição metafísica ocidental sempre recusou ou ignorou o nada na definição do ser. A serenidade de Nagarjuna advém do fato de que está no nirvana, um estado de quietismo absoluto. Pode, portanto, incorporar como miragem o próprio ser, que se torna, dessa maneira, uma miragem de si mesmo. "Tudo é vazio", "a verdade é pura vacuidade". Essa inexistência, essa redução do ser a espuma não o incomoda. Não é pessoa, mas miragem, apenas.
Nietszche, ao contrario, não poderia suportar semelhante perspectiva, afundado como estava na vaidade humana . Acreditava que o Homem era algo, uma experiência básica de vida real, metamorfose contínua, que se esgotava na vontade de poder e renascia no eterno retorno. A pertinência de Nagarjuna, ao contrário, ao negar a essência, o levava a aceitar o fato de que ele nada era, e não havia qualquer diferença entre "nirvana e samsara", isto é, a libertação da dor e o eterno retorno.
No entanto, parece estranho que o budismo mahayana tenha postulado a existência dos bodisatvas, santos budistas que, após a morte, se propõem a ajudar as pessoas perdidas nas miragens do mundo a alcançar o nirvana. Como bem ponderou Dasgupta, esses santos, a quem a devoção popular atribuiu ao longo dos séculos no Oriente o papel de espíritos compassivos amigos dos viventes, atuam, no entanto, num estranho limbo espiritual:
"Na realidade não existe o ser, não há prisão, nem salvação; e o santo sabe disso bem, contudo não teme essa alta verdade, mas prossegue em sua jornada de alcançar, para todos os seres ilusórios, uma libertação ilusória de um cativeiro ilusório. O santo é movido por esse sentimento e prossegue em sua obra, embora, em realidade, não exista ninguém que deva alcançar a salvação e tampouco alguém que deva ajudá-lo a alcançá-la."
Porque tal movimento se verifica, então? Provavelmente porque a ideia de um vazio originário, da ausência de substância é tão hostil ao Homem e à realidade das coisas que é necessário ir adiante nessa ilusão de que mesmo que nada exista deve haver algo. É necessário acreditar que mesmo sem a eternidade as coisas devem continuar a fazer sentido, mesmo que evidentemente não façam.
Não podemos deixar de ponderar que algo semelhante ocorre na modernidade, em decorrência da dita morte de Deus e na necessidade de substitui-lo por valores temporais e imanentes, projetos utópicos e ideias de progresso.
O pensamento de Nietzsche destruiu o sentido substancial das coisas, tornado impossível no mero poder e no retorno do mesmo. Mas tanto na antiga Índia de Nagarjuna, quanto na Alemanha de Nietzsche, a necessidade da substância se colocava a cada momento. A urgência da experiência do sentimento do eterno nunca pode ser totalmente destruída.
Na negação de Deus e da substância, o ser continua buscando um sentido qualquer que possa ser experimentado no mundo e que pareça ser eterno. A necessidade da esperança continua, portanto, existindo mesmo quando colocados diante da crença no vazio. O reconhecimento do nada como fonte e destino (ou não-fonte e não-destino) inviabiliza a existência humana, a pessoa e sua realidade. A persistência das ilusões no mundo, condenadas por Nietzche no que teriam de irreais e toleradas pela tradição filosófica mahayana pelo que tinham de necessárias, se explica pelo desespero que surge diante do abismo do nada, vazio e mudo.
1 DASGUPTA, Surendranath: A history of indian philosophy. Vol. 1. Cambridge University Press, 1922 p.127-128
2 DASGUPTA, Surendranath: A history of indian philosophy. Vol. 1. Cambridge University Press, 1922. p. 166
3 "The Madhyamika-sastra of Nagarjuna". In Stcherbatsky, Theodore: The Conception of Buddhist Nirvana Delhi, Motilal Banarsidass, 1989, I e X. Pp.78-79
4 DASGUPTA, Surendranath: A history of indian philosophy. Vol. 2. Cambridge University Press, 1922. p.164
5 DASGUPTA, Surendranath: A history of indian philosophy. Vol. 2. Cambridge University Press, 1922. p. 4
6 DASGUPTA, Surendranath: A history of indian philosophy. Vol. 1. Cambridge University Press, 1922. p. 127
7 DASGUPTA, Surendranath: A history of indian philosophy. Vol. 1. Cambridge University Press, 1922. p.127








"A necessidade da esperança continua, portanto, existindo mesmo quando colocados diante da crença no vazio." Obrigado, Professor Edgard.