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O sono da razão produz monstros



Edgard Leite Ferreira Neto


Em fevereiro de 1799 o pintor espanhol Francisco Goya (1746–1828), colocou à venda um conjunto de gravuras que denominou de Caprichos. No nosso tempo somos muito preocupados em saber exatamente o que uma obra de arte transmite a quem a contempla, sem perceber que, muitas vezes, é o ambíguo, ou o misterioso, que contém a mensagem a ser recebida, e esta se impõe precisamente no enigma, introduzindo um problema que se torna evidente. Assim o é com a obra, diríamos conceitual, de Goya, e portanto também Caprichos.


E com isso concordou Todorov, em seu estudo sobre o pintor espanhol, quando falou da dualidade da sua obra (poderíamos falar mais de sua ambiguidade?). Para Aldous Huxley, esse mistério era evidente, partindo do princípio de que Goya era uma personalidade desprovida de espiritualidade, atormentado exclusivamente com o mundo. E o provava, segundo Huxley, com sua inquietante composição Agonia no jardim, onde a fisionomia do Cristo era comparável à dos patriotas espanhóis diante do pelotão de fuzilamento francês, provavelmente se referindo ao seu outro quadro, El tres de mayo de 1808, sobre o qual tratamos em O valor da liberdade.




Parece certo um relativo afastamento de Goya da religião. Mas o sofrimento do ser diante da morte, especialmente daquele patriota que abre os braços frente aos invasores franceses, como que antecipando a crucifixão, não é o mesmo sentimento que Jesus, verdadeiro homem, sentia plenamente, ao compreender a realidade do fim? E, principalmente, nesse movimento de Jesus não está o de ver na morte a redenção - como entendia, sendo verdadeiro Deus? Isso não oculta o distanciamento de Goya da religião formal, que normalmente satirizava. Mas a sua tensão diante do assunto era permanente. E a experiência artística traduzia percepções profundas não estranhas à movimentos de transcendência religiosa. Aqui, sua ambiguidade.


Nos Caprichos há uma gravura intrigante que reflete as inquietudes de Goya sobre nosso mundo. Ele, diferentemente de Hieronymus Bosch (1450-1516), que discutimos em Ensaios serenos, já vive em pleno mundo iluminista, e conhece a sua realidade instalada. Bosch, três séculos antes, pressentia o horror infernal do mundo moderno. Goya, ao contrário, manifesta um encantamento pela forma como os desejos fluem numa sociedade desligada do sentimento de culpa, ou seja, exatamente o inferno do mundo moderno. Mas também era capaz de entender seus horrores.


A gravura em questão é o Capricho no. 43, intitulado “o sonho [sueño] da razão produz monstros”. “Em espanhol”, afirmou Todorov, "o termo sueño possui um sentido duplo, o de “sono” e o de “sonho”, o que autoriza uma dupla interpretação dessa frase”. Trata-se aqui daquilo que Todorov chamou de dualidade e nós chamamos de ambiguidade. Isto é, ël sueño de la razoa" tanto pode significar que sem a razão as ações humanas são inconsequentes, pois a razão (a razão prática de São Tomás de Aquino) encaminha para as virtudes, quanto que imergir na razão, como num sono, é igualmente uma experiência capaz de gerar monstruosidades. Mas neste último caso, provavelmente, ele está falando de uma razão que não está ligada à essência ou à realização de virtudes ou valores morais, mas que, ao contrário, concede ao homem a liberdade diante do essencial. Pois, no período da ascensão iluminista, há também ambiguidade no entendimento da razão.


Bosch, que vivia, em seu tempo, a associação teológica entre a Fé e a razão, ou a busca de uma Fé razoável, via o mundo sem Fé que se formava, onde o invisível não era visto, como absolutamente monstruoso. Como retrata bem em suas telas, em tal novo mundo a razão solitária, por si só, sem Fé, sem essência, apenas era capaz de produzir carnificina.


Goya, que já se inseria nesse mundo formado, e se encantava com a obscenidade tornada viável na sua racionalidade absolutamente secular, asseverava, no entanto, a necessidade de preservar os elos entre a racionalidade e a imaginação, talvez com a Fé, sem a qual apenas monstros seriam produzidos, como mostra no El tres de mayo de 1808. O Iluminismo desprovido de espírito, ou de Fé, esperança e compaixão, era capaz de reproduzir a razão do mundo somente, isto é, a a morte, e transformá-la em plataforma política suficiente.


Assim, para Goya, abandonar a razão, e se entregar a uma Fé cega ou à imaginação, era produzir monstros, mas também viver apenas a ilusão da razão sem fundamentos espirituais era engendrar continuamente o terror. Isso demonstra uma visão muito real, e não pessimista (como afirmou Andrew Schulz), do papel da razão na alma humana, dentro da qual pode ser tudo, e nada. E, principalmente, demonstrava como o Iluminismo, tão bem recebido, era capaz de ser tão frustrante em sua realidade moral.


Com a Fé, sustentamos a realidade do invisível. Sem a Fé apenas se aponta a monstruosidade lógica de um mundo que se decompõe e é matéria prima da maldade humana. O novo tempo será um tempo de horrores, profetizou Bosch, embora ele não vivesse totalmente nele. Mas para Goya, que nele vivia, e que perdera, como sustentou Huxley, o seu vínculo com a transcendência, ele não será, mas já é, absolutamente terrível.


Por isso, em Goya, o mundo que emergia já formado, no século XIX, era de profundo terror, sem esperança, sem fé e sem compaixão. O que era externo, em Bosch, era interno em Goya.



A vivência exclusiva da razão iluminista ou a Fé cega produz monstros. E não é a crença iluminista na razão uma Fé cega? Goya reflete, já próximo da morte, em 1824, na tragédia do mundo da razão sem imaginação, que devora tudo. Fenômeno diante do qual ele é incapaz de reagir. E o faz em Muchacho espantado por un hombre. O retrato do ser humano que está diante apenas da terrível realidade do mundo, sem Deus, sem esperança e sem compaixão.


Se existe algum angustiante entusiasmo em Goya pela razão, havia, sem dúvida, na sua alma, a dor de não conseguir experimentar pessoal e socialmente a integração da imaginação e da Fé, capaz de livrar o Homem do terror de seu tempo e resgatar, para o ser, a esperança. Goya é testemunha e profeta das carnificinas do Iluminismo. Não apenas no mundo, mas também dentro da sua própria alma e de todas as almas imersas no sono tenebroso da razão sem essência.

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