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Joaquim de Fiore e a transformação da natureza do mundo

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A percepção de que tudo no mundo é transitório, absolutamente tudo, inclusive as ideias que possamos ter sobre ele, exerce um papel controverso sobre a consciência humana. A desagregação contínua das coisas, por exemplo, não significa que estas sejam ruins. O desagregar garante sempre a experiência de prazeres circunstanciais, que o são na sua singularidade temporal e dentro desse universo de fragmentação. Muita coisa faz o Homem tanto no sentido de elaborar obras transitórias, mas que o realizam, quanto no de buscar a eternidade que sustenta tudo, através das suas experiências sensíveis. Por isso, assim está na Bíblia, Deus, ao criar o mundo, afirmou que este "é bom" (ki tov). Mas até onde deve chegar o envolvimento do ser com o mundo?


Para alguns, como Buddha ou, mais precisamente, Nagarjuna, não pode haver qualquer envolvimento. O desejo que ata o Homem ao universo gera apenas sofrimento. Para outros, para os quais a única coisa existente é a matéria, tem que ser um envolvimento total e absoluto. Toda a fragmentação e morte está inserida na própria natureza do existir. Agarrar-se à incompletude dos desejos e das realidades é o destino do ser neste mundo. É esta uma dimensão dominante entre os pós-modernos, parece.


A pessoa pode entender, no entanto, que o sofrimento do mundo é nosso destino e caminho para transcende-lo. A materialidade só se explica pela imaterialidade. E que a esta transitoriedade corresponde uma eternidade que a tudo atravessa e que pode tornar a existência da dor um meio para ir além do mundo.


Mas há também aqueles que acreditam que a matéria possui uma razão que progride do pior para o melhor, e que numa escala social e ampla, tudo, neste mundo, conspira para tornar a vida humana desprovida de dores e plenamente realizada. Acreditam que o mundo possui uma lógica própria que realiza tudo e permite a superação da dor. Trata-se aqui de uma certa interpretação da teoria da evolução, por exemplo, ou da ideia de progresso.


Neste último caso considera-se que a história, as políticas públicas, o dinheiro, as leis humanas, as leis científicas, têm a possibilidade de tornar os seres humanos não apenas circunstancialmente melhores do que são, mas substancialmente melhores. Tudo aquilo que os caracteriza como pessoas, por exemplo, a capacidade de fazer o mal, a si ou ao próximo, ou a possibilidade de identificar tal mal e mudar de direcionamento existencial, tenderia a desaparecer lentamente ao longo de processos naturais, ou políticos e sociais, ou eventualmente eugênicos. O Homem se tornaria substancialmente bom, como culminância de um processo natural ou como fruto de uma engenharia científica qualquer.


Esta última perspectiva é resultado direto do pensamento iluminista, e, evidentemente, esbarra na óbvia natureza das coisas, que é a de desagregação e desaparecimento. Pode haver algum movimento que se origine exclusivamente das coisas do mundo que seja eterno e que seja capaz de agregar energia de forma constante e crescente ao seu desenvolvimento? Tudo indica que não, a começar pela segunda lei da termodinâmica, pois num sistema isolado ou fechado, o mundo exclusivamente material, a energia é consumida e se dissolve. A crença nesse movimento natural autônomo foi duramente combatida por Nietzsche e pelos pós-modernos com muita coerência e veemência. Mas de onde tal ideia veio?


A ideia de progresso em etapas, que conduz o Homem e o mundo para uma situação cada vez mais perfeita, que emerge de forma límpida no Marquês de Condorcet (1743-1794), foi tida como tendo sua origem imediata na obra do abade calabrês Joaquim de Fiore (1135-1202). Essa afirmação se encontra na quase totalidade dos intelectuais que se dedicaram ao assunto: Oswald Spengler (1880-1936), Jacob Taubes (1923-1987), Karl Löwith (1897-1973), Norman Cohn(1915-2007), Eric Hobsbawm (1917-2012). Eric Voegelin (1901-1985) afirmou de forma peremptória que: "Joaquim foi o responsável pelo espírito gnóstico que comanda a política atual".


Uma importante responsabilização do Abade pela ideia de progresso, numa perspectiva revolucionária, foi feita por Friedrich Engels (1820-1895), que em seu "A guerra camponesa na Alemanha" considerou que Thomas Muntzer (1489-1525) líder reformador e revolucionário era inspirado pelas ideias militaristas de Fiore. Em que pese todas esses assertivas, como bem anotou Mathias Riedl, "a imensa maioria dos escritores que se referiram a Joaquim, a partir da Reforma, jamais chegou sequer a tocar em uma obra original do abade".


De fato, a obra de Joaquim de Fiore teve uma significativa importância na dita Idade Media, mas possui certas particularidades. Os franciscanos espirituais, que a difundiram em suas variáveis muitas vezes heréticas, estão na origem da disseminação de sua teoria sobre as três etapas da história, a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Tal teoria teve efeitos na sociedade, por exemplo e principalmente em Portugal. Foi em Portugal onde se originaram as festas do divino Espirito Santo, que se espalharam para o Brasil e sustentaram a legitimidade das ideias tanto do sebastianismo português quanto as do Padre Antônio Vieira na visão profética do V Império. Dante colocou Joaquim de Fiore no Paraíso:  "brilhar vê ao meu lado o calabrês Abade Giovachino, de espírito profético dotado". E a Igreja o considera ainda beato. Em que grau e em que medida, portanto, pode a obra de Joaquim de Fiore fundamentar a perspectiva iluminista da História? A ideia do progresso ou o "gnosticismo da política atual"?


É necessário recorrer à obra de Joaquim de Fiore, para melhor entende-la. O abade considerava a história acompanhando uma trajetória que espelhava a Santíssima Trindade. Isso era diferente da tese da Santo Agostinho, ou de Paulo Orósio, que viam a história no âmbito do material como fruto das decisões humanas que se seguiram ao pecado original. O que asseguraria um contínuo debate interno do Homem sobre suas decisões e escolhas até o final dos tempos, isto é, da história.


Fiore entendia diferente. Segundo ele existiria um determinismo divino nos acontecimentos históricos, reflexo do ser de Deus:


"o primeiro dos três estados [status] dos quais eu falo foi no tempo da Lei, quando o povo do Senhor serviu como uma criança, por um tempo submetido aos elementos do mundo (... ) O segundo status foi sob o Evangelho e permanece até o presente, com liberdade em comparação ao passado, mas não com liberdade em comparando com futuro. (... ) Portanto o terceiro status virá no fim do mundo, não mais sob o véu da letra, mas na absoluta liberdade do Espírito. (... ) A letra do Velho Testamento pertence ao Pai. A do Novo Testamento, ao Filho. Assim o entendimento espiritual que provém de ambos pertence ao Espírito Santo".


Essas ideias, embora nunca explicitamente condenadas pela Igreja, deram origem a movimentos dissidentes medievais, estes sim, tidas por heréticas pelo Papa (residente então em Avignon) João XXII (1249-1334). Principalmente porque partiam do princípio de que em algum momento a Igreja de Cristo seria superada. E um novo Evangelho emergiria. Conforme conta Guilherme de Tocco, em sua biografia de São Tomás de Aquino (1323),


"o nosso doutor [Sao Tomás de Aquino] procurou um dos livros do abade em certo mosteiro e o estudou minuciosamente. Onde quer que encontrasse algo errôneo ou suspeito no livro, sublinhava a passagem condenada; tudo o que havia rejeitado com sua própria mão douta, Tomás expôs como indigno de ser lido ou acreditado".


Alguns dos problemas da teoria de história de Fiore estavam na negação do papel eterno de Cristo, na negação dos Evangelhos e da revelação ali contida, e também na defesa de que o mundo, enquanto mundo, poderia vir a ser purificado ou santificado. Mas há um corte, sem dúvida, entre a razão de Fiore e a razão moderna. Para Fiore esse movimento era fruto de uma graça de Deus, que vinha de fora do mundo, pois lhe parecia, corretamente, aliás, como já notamos, impossível que a realidade do mundo pudesse ser alterada pelo Homem ou pelo próprio mundo. Sendo este uma criação de Deus.


A perspectiva moderna, ao contrário, parte do princípio de que é o Homem capaz de mudar sua própria natureza ou a da sociedade em que vive graças a leis científicas ou à sua exclusiva força de vontade.


Assim, quando se apontou Fiore como origem da moderna filosofia da história, o fizeram por um duplo caminho: primeiro pelo fato da Igreja ter, afinal, condenado tal perspectiva, o que lhe dá alguma legitimidade por ter sido alvo de uma sanção clerical (o que lhe valoriza, aos olhos da razão iluminista), e por, aparentemente, segundos muitos que não concordam com a primeira qualificação, ter legitimado o caminho do mundo como caminho de realização exclusiva (o que não é, em absoluto verdadeiro). Assim, não se pode deixar de considerar que a recuperação de Fiore na modernidade é mais um dos movimentos de construção de narrativas sobre o passado cujo único objetivo é legitimar o presente ou as críticas sobre o presente.


Observamos, no entanto, que há, tanto em Fiore quanto em Hegel, Marx ou Comte (que seguiram análoga proposta de etapas históricas) uma profunda negação do caráter fragmentado e efémero dos acontecimentos no universo, que acreditam poder ser revertido, neste mundo. Muito embora Fiore, com mais razão, só entendia esse movimento possível se viesse de Deus, através da manifestação de uma vontade da eternidade, e que assim seria. Nisso era dissonante diante da doutrina da igreja, apenas. Mas não diante do reconhecimento da mortalidade absoluta das transformações no mundo, medida pelo tempo. Neste sentido, à luz da história do pensamento, podemos supor que Fiori, ou a teleologia moderna, compartilham das mesmas ilusões com relação ao que este mundo fragmentado e transitório é capaz de oferecer e fazem portanto parte da mesma e recorrente ansiedade de salvar o mundo de sua natureza, ou na sua substância. Promovendo, assim, uma guerra incessante contra a realidade.


___________

1 RIEDL, Mathias: "Longing for the Third age: Revolutionary Joachism, Communism and National Socialism" in RIEDL, Mathias (ed.): A Companion to Joachim of Fiore. Leiden, Brill, 2018. P. 267 +

2 MCGINN, Bernard: "Introduction: Joachim of Fiore in the History of Western Culture" in RIEDL, Mathias (ed.): A Companion to Joachim of Fiore. Leiden, Brill, 2018. p. 11

3  RIEDL, Mathias: op.cit., p.275

4 ALIGHIERI, Dante: A divina comédia. XII-139-141 Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2017.

5 MCGINN, Bernard. Visions of the end: apocalyptic traditions in the Middle Ages. Nova York: Columbia, 1979, p. 133-134.

6 DE TOCCO, William: The life of St. Thomas Aquinas. Saint Marys, Angelus Press, 2023. p.91

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